sábado, 24 de fevereiro de 2018

petrificados

de cima
vê-se uma concha
duas metades fechadas
apertadas e grudadas:
uma pedra, um fóssil,
uma gema sólida
dentro: nenhuma pérola
magma intangível
ensurdecedor
calmo e dormente
feito semente rara 

(de cima ainda)
a concha (ainda)
que se abre
duas metades ligadas
um traço que as conecta:
uma borboleta de areia
de todas as cores visíveis
de todos os tons sensíveis
de todos os sons perceptíveis
no meio: pérola nenhuma
intangível magma
silenciosa ruptura:

o despertar onírico
o gozo de um anjo negro
o canto de um rouxinol cego
o aperto de vinte dedos enodados

âmbar do (des)enlace

{20-02-18}

anafórico

a solidão é um tipo de dor
que brota e cresce profunda
escondida: uma ameixa escura
suculenta atrás de muitas folhas
contra o sol, uma fruta que se come
delicadamente enquanto, na água, os pés
buscam se aquecer; um tipo que parece miúda
mas 'inda se mostra um inseto incandescente na mata
noturna; uma embarcação em mar aberto a assistir o sol
se pôr infinitamente; é aquele relâmpago surdo que atravessa
o céu azul-petróleo de uma tarde de verão animada por uma brisa
quente; a mariposa cinzenta que entra no quarto abafado e iluminado
por uma lâmpada fria que aviva o apartamento pequeno enquanto você lê
distraído; um marca-páginas reencontrado num caderno esquecido entre os
papéis amarelados na velha estante marrom; um carro com farol fraco que viaja
vagaroso pela estrada vazia, ao lado, a floresta úmida e tão densa que é quase sólida.
a solidão é um tipo de árvore frondosa que não faz sombra, mas dá flores e frutos na Sibéria.


{17-01-18}

sufoco

me'ngasgo, vagarosa;
as palavras engolfadas na garganta
envolvidas numa bolha de ânsia;
eu grasno e rasgo as cordas vocais,
as palavras entranhadas nas paredes
parecem se aninhar nas rachaduras;
eu estrangulo as sílabas separadas
tentando, assim, uma exposição;
ainda crocito um balbucio insuficiente,
ineficiente apesar dos traços e estrias
na goela inflamada; eu destroço
o pulmão em melodia surda,
explodo os olhos em cores divinas
enquanto um coro demoníaco
atropela os meus ouvidos;
eu asfixio, fecho-me numa moela: 
moeda internacional dos mudos de amor.

{19-12-17}

(enquanto você toma banho)

você me chama pra colher os pêssegos
descemos entre as árvores do bosque
até encontrá-los maduros e plenos
você pega um com a mão, aperta
a pele e roça a penugem com os dedos
esguios, se delicia um momento
antes de lhe cravar os dentes amarelos
e arrancar-lhe devagar a pele
deixando o suco escorrer pelo 
canto da boca e entre os dedos
magros, você chupa com satisfação 
suave, me ri olhos e lábios, pega outro
e repete o ritual de roçar os dedos
os pêlos nas penugens no pêssego
na tua língua na tua boca o pêssego
nos teus olhos e cílios o pêssego
o suco nos nossos pés, nossos membros,
escorre pelos dedos e braços o abraço
todo molhado de suco que sugas
com a boca infinita em chamas
e não se cansa, um pé inteiro,
sem gastar o riso e o canto
que ecoam pelas árvores
no chão, a terra úmida
{02-12-17}

rejeito

essas paredes
esses papéis
m’embrulham feito lixo
orgânico bem fechado
que é pra não sair cheiro
não entrar mosca varejeira
bem empacotado num saco
preto não reciclável e lá dentro
me jogam – o latão vermelho:
onde encontro tantos outros
socados como eu
apertados uns nos outros
sem nunca se encostar.
o suor que escorre entre
um plástico e outro
a nos enojar
e separar


{Jan 2016, atualizado}

de tanto vai-e-vem

queria dizer algo como envezados
envileirados, não, que não estão
em formato de vila, nem o são.
enfileirados, estão, mas não.
não é isso, ainda, Carlos.
você me entende, mas
sabe o que eu quero
dizer?
queria dizer algo como
enviesados, talvez estejam,
até. esses prédios todos, Carlos,
eu quero dizer. não quero dizer que
não estão assim: em vila, em fila, de viés.
talvez estejam. outro ponto de vista, de cima,
eu quero dizer.

eu quero dizer: os prédios estão em forma de V,
Carlos, de V. no final da rua eles se encontram, sem
se cruzar, que não estão encruzados, encruzilhados.

eu quero dizer: os prédios estão em forma de V,
no meio deles: o céu inteiro, negro, imenso, atravessa,
sobrepõe, apaga. que força a dessas luzes que não
iluminam as estrelas e os cometas a noite inteira?
que força a das lamparinas acesas num quarto
pequeno em que não se lê sequer um poema?
 que força a das meninas acesas num quarto
a noite inteira, sem um milagre que lhes suceda?
eu quero dizer: lá de cima, alguém me vê?
a luz acesa - eu vejo - uma silhueta
pequena, um ponto. Carlos, um 
ponto pode ter, 
também,
forma
de
V?
{09-08-17}

incêndios

queima cada canto desta casa,
cada quadro e retrato pendurado
queima a tinta das paredes
e nela todos nossos entes
queridos – esquecidos
nos dias idos
abrasa o canto e a casa
o ninho dos pássaros
que nos acordam
antes do sol e dos raios
arde as penas e os pelos
e os desenhos dos tapetes
– comprados em dias perdidos
enrubesce o chão, as frestas, os restos
queima devagar e sai pelas janelas
(mas, se em alguma parede em ruínas
sobrar algum retrato, emoldurado
num quadro preto, o vidro chamuscado,
as laterais esbranquiçadas pelo tempo,
que seja o da vó que não conheci)

{Set 2017, atualizado}

de inícios

um café bem passado
se fica parado –
numa mão fria
que não desvia
a atenção das
memórias idas –
fica amargo
e ácido,
vencido
.
              que fardo
infeliz é tomá-lo
desavisado
não ter notado
o pó sedimentado
no fundo da xícara
– vermelha e verde,
presente de um dia quente –
que embaraço

é encontrá-lo amarescente.

no fundo
as memórias de um café
ainda quente e cheio de fé,

nenhum tom acre ainda.
é como a primeira namorada.


{01-09-17}

a vizinha catarina

nas rachaduras dos meus pés,
entranhadas, partículas vermelhas
de uma terra vizinha e quase minha,
fazem-me velhinha
sem prole que m’ouça
contar casos de quando moça.
nas linhas finas de meus cascos
- que asco! -
se confundem: o vermelho
o amarelo e o cinza, daqui
- d’onde, dançantes, os duendes
e, risonhas, cantantes, as bruxas -:
areia que cobre a rua inteira
e prepara um suave carnaval
para esse povo de maral no céu
sambar com anjos, até que
as ostras se abram sozinhas.
nas erosões provocadas
pelo tamborilar dos meus dedos
e calcanhares pelos ares,
estranham-se pedrinhas
dessa terra vizinha que não deixa
de ser, também, a minha,
mas que, com esponja e sabão,
perde a vermelhidão:
esbranqueço na saudade
{25-07-17}

reforma

o barulho da furadeira,
que, inteira, se afunda na
parede de cimento, fecunda-
me de toda ausência:
atravessa a porta a janela os móveis minha cama nossos pelos meu sossego:
sagaz, o homem que fura,
pendura armários vazios,
prateleiras bem cheias de nada.

febre

a pele de galinha que não se aquece
nem com o vapor do banheiro quente,
as tetas rígidas que não apontam direção
nenhuma além do fim incerto, inerte.
a água morna que percorre o corpo:
um mar de efervescência malemolente


as olheiras mais fundas que nunca,
não reconhecem os olhos vermelhos
e lacrimejantes, os cílios grudados,
os dedos enrugados de tanta água:
evapora nalguma indecência


já distante na memória oca:
os dias de calor d'outro corpo;
não penetra estas vértebras
amor algum, calor algum
que não seja esse mal-estar
contínuo, longínquo, de setembro
a junho, 
um jejum infinito
de felicidade: é final de tarde

e a chuva insiste que cai
dos olhos marejados.

la ragazza

acordo, como Carla, sob um céu de aço,
que não faz teu pelo de fogo
reluzir como em outros dias,
de exaustão;

aqui em baixo,
chuva e frio

penetram nossas cobertas
já cheias de pelos pretos, amarelos,
cinzas, castanhos, 
um de cada,
que aqui a sujeira 
é democrática:
bagunça de nossa existência.



acordo, diferente, espero
pelo teu vai-e-vem.

tempos

preparei-me as malas grandes
p’ra poder mais tarde partir;
marquei-nos um encontro na
na praça entre a minha e a tua
casa (vazia).
separei-me as tuas roupas:
um moletom muito macio,
aquela tua camiseta favorita 

e a nossa coberta pouco colorida.
esvaziei-me as gavetas
e joguei fora os papéis:
amarelados sem tinta
nada por escrito
além de uns rabiscos –


a tua letra de criança
lembra-me que a infância
já 'cabou, hora de seguir,
mas ainda temos tempo
até partir 
daqui,
tempo para
um espresso caramelo
feito co'aquele grão que eu
te falei semana passada,
mas tu riu da minha cara:
café é café.


– ligo-te para dizer-te
que m’esqueci de pensar-nos
livros (rabiscados),
os meus e os teus,
também, na estante
toda branca de madeira
e com espaço pras nossas
conversas (infinitas).
permito-me um olhar
sobre as malas, pequenas
demais para nossos desejos


termina um bocejo


{12-05-17}

de tempestades

um cricrilar na noite escura
invade a minha janela.
um cricrilar na noite escura
passa o cimento cinza
atravessa os tijolos
e os rebocos:
entra por qualquer fresta
a festa de um grilo só.
um cricrilar na noite escura:
o barulho oco no cômodo
vazio
cricrila tão desesperado
quanto um crocodilo perdido
na selva amazônica.
cricrila na noite escura,
invade a noite escura,
atravessa a noite escura,
esvazia a noite escura,
a cidade na noite escura.
o grilo remói a procura.
e a gente na escuta.

{15-05-17}

F F a c i n

se procurarem no teu corpo os pontos cardeais da tua beleza, eles se nortearão a partir dos teus olhos oblíquos em direção às bochechas em divisa; do pescoço branco aos braços delicados; das mãos de menina a todos os cantos sinuosos de musa renascentista. dentre todas as tantas pintinhas que tens tatuada pela pele, não se atinarão daquela que guia os outros pingos e te transforma num mapa celeste. a minúcia os cegará. por eles passará despercebido tudo que há de mais belo: és completa da cabeça aos pés. e se procurarem mais a fundo, te investigando como um contador a tabelas, talvez encontrem teus ímpares: a doçura amargável, a ousadia escondida em pequenas cóleras pacíficas. ainda outra vez te sondarão as curvas, sem compreender o destino da estrada: tuas flores ou tuas pedras, tua menina escondida ou tua fera revelada. mas, é sob teus cílios, teus olhos de ressaca, que jaz o mistério das musas.

{03-02-17}

me sacode às seis horas da manhã

o café mal termina de passar
e a cafeteira grita rouca,
como uma louca avisa:
a água ferveu!; o gato mia
espraiado pegando o sol da
manhã, mal acordado; a solda
da cafeteira, quase derretida,
queima a mão da guria,
desavisada, que grita:
aah!
e um bom dia.

cidade

hoje ela acordou,
manhã cinzenta;
cigarro e carro e indústria
acordaram hoje,
os sons em fúria
ressoando pelos metálicos
teus pelos cinzentos
(e eriçados de frio e preguiça;
em novembro e o calor estia,
chega em seu lugar a brisa
congelando sonhos distantes)
hoje ela acordou,
como tantas outras vezes, 
sonolenta e agitada;
em rápido funcionamento:
estacionamento e estrada
acordaram hoje
cheios e acimentados,
sem espaço pros teus
preguiçosos miados
(de não teres nada para fazer,
só comer brincar sonecar
- com saudade de um colo -
no sofá, 
o sol amarelo)
hoje ela acordou
em manhã cinzenta
pássaros marrons
um canto alucinado
perto da janela
(onde também alucinas
e sonhas caçá-los,
mas vê se te alimenta
que o dia é longo e
o ritmo daqui é outro
dos teus cochilos em ninhos)

antes de dormir.

não é o nojo da barata
(que anda cascuda e
desnuda pela rua,
suja e noturna,
até às tubulações 
do pequeno apartamento),
nem a ojeriza do rato
(que corre pela praça
e caça um resto de
maçã que apareça,
e também anda pelas
encanações do meu
pequeno apartamento),
não é a repulsa da lagartixa
(que sobe a parede,

lisa e úmida, 
em dias de chuva,
no 
meu pequeno apartamento),
nem a quietude do gato
(que dorme,

cinza e quente,
em dias amenos):
é, talvez, a tristeza em buscar
preencher o vazio da voz
na tua prece não-dita

convoluta

você estava deitada
(a cabeça em meu peito,
e o resto do corpo no 
meu corpo inteiro),
o ar pesado e você
ainda o respirava:
puxando leve, dentro
de si toda a preguiça
do mundo aos domingos.

você estava deitada
(o nariz em meus pelos,
um ataque à rinite)
escondida da noite
suave, a circular teus
cachos tão bagunçados,
e teus pés magros
aninhados nos meus.
você estava em pé, 
de repente, os olhos
a me perscrutar
o sono irregular:
de dia adormecido,
à noite aos ruídos
de estrelas e cometas.
você estava na rua,
habitando meus sonhos
diurnos e meus
delírios noturnos:
as tuas mãos
num burburejar,
o teu peito num grito
enlouquecido e surdo.
você, muda,
parecia, enfim, sonhar

na minha cidade há uma rua em que os carros param e parecem à beira do abismo esperam o semáforo e dali pra frente é só pra baixo rumo ao ho...