sábado, 29 de agosto de 2020

caí um dia de imprevisto do pé de árvore
que dá frutos que se tornam suas próprias
frutas, que fazem do invólucro carnal
algo seu, sua pele ou casca, em que
guardam sua carne suco caroço
semente. caí. sem nem perceber.
batia um vento suave e quente
era tarde de novembro úmida
vento de verão e brisa de mar
cheia de sal e água e areia
se misturando à terra toda
e aos poros da minha pele
que ainda não havia decidido
- não sabia que podia decidir -
se seria casca ou pele mesmo
se seria feita para teus dentes
ou para ser arrancada com mãos
e unhas, com faca e canivete;
neste dia imprevisto em que caí
e rolei pelo chão terroso e seco
percebi:
podia continuar rolando
fazendo grudar na superfície
da pele todo tipo de terra
saborear todo tipo de sal
e argila e areia e água
da chuva do rio do mar
percebi, então, naquele rolar,
a importância das raízes
que te fazem presa a um lugar
a um modo de ser e viver
e se desenvolver e ver
o mundo sempre do mesmo
ângulo: não julgo a árvore
pois imagino que um dia algo
de mim possa alimentar outra
árvore ou possa até mesmo
virar árvore - um triste fim -,
mas aproveito o delicioso momento
o saboroso movimento de rolar e
poder ser
tudo o que a terra tem
a me oferecer: ir além!
é bom enfim descobrir
que o fruto nunca cai longe do pé
e que isso não significa que não se possa
dar no pé e correr e criar um modo seu
de voar e quem sabe virar pólen e enfim
pó; apodrecer e assim dar
outras formas de viver

sexta-feira, 21 de agosto de 2020

 recomeçamos entre quatro paredes
de vidro: recortados em janelas
de espaço unidimensionalizados
trancados limitados a lampejos
de tempo destacados e no fim
a sós com nossos reflexos
pálidos que nos olham de volta
em desespero e leve tormento

atravessas a montanha
desafiando tempo e espaço
agora domados e dobrados
ao teu desejo ao teu momento,
meu tormento, vens a passos largos
suaves e sorrateiros para que não
te perceba a marcha o tempo
e possas chegar como trovejo

surpreendida a natureza em festa
surpreendidos pelo acaso dessa
merda de porta que encerra
um de cada lado: o tempo do
respiro suspiro alívio tranquilo: revela
a espera do toque-remenda
o som das palavras se reformando
uma sobre as outras como tempestade
em recanto de passarinho

dilapidar

 um dia precisei fazer
um homem de barro
uma estátua em madeira
em maneira a cobrir tudo
de ouro fundido em ferro
bruto de paixão e luto
feito algo da natureza
trabalho de formiga ou abelha
então juntei minhas mãos
olhei-as sem vê-las
distraída de êxtase
tremeliquei os dedos por diversão
sem saber o movimento exato
por onde começar a criação
enfiei as mãos no barro
e amassei-o fazendo-o
passar por entre os dedos
inteiros a distribui-lo
poro por poro
conhecendo sua textura e cheiro
apertei-o até ficar quase seco
assim me desconhecendo
juntei tudo com as mãos
que àquele ponto não
serviriam nem
para fazer pão
juntei-o recriando
esperando a magia da
fermentação dar-se sem
minhas mãos, esquecendo-me
do homem que esperava, maldição,
pensando na penetrabilidade
de meus poros e a umidade
de meus olhos: enfim sãos:
não nasci artesã
e indassim insisto
e por um momento pequeno
considero-me a mulher
que morde a maçã
e descobre caminhos outros
trilhas a serem seguidas
de punhos bem fechados
aquela cuja salinidade dos olhos
reequilibra o tom do choro
e umedece de novo o barro
como quem pode
como quem poderia
recomeçar do zero
número impossível
incompreensível em sua totalidade
e menos ainda em seu valor absoluto
mas não sou eva! e convivo
com meus pecados desconhecendo-os
crendo-me criatura em movimento
de reconhecimento
da criação, mas as minhas mãos
não dançam nem orientam, antes são
a não ferramenta de desferramentas
remolhando o barro vejo-me
imperfeita na iminência da impotência
a mão que treme
e nada cria
o som duro da consoante que não sai
o nó na garganta de quem
desconhece vogais
a madeira também umedecendo-se
apodrecendo-se, fazendo-se algo
novo por conta própria: criando-se
é criadora de sua própria criatura,
faz-se na potência: força criativa
relevando-me nua ainda
mãos e olhos em chama miúda
a massa completamente crua
e não há ouro que salve matéria bruta

nu corpo

sinto meu corpo lento
cada alongamento é um
golpe violento uma
faca que atravessa e
separa o músculo
da carne que pulsa
lúcido enfim o corpo
nu como há muito não
se comprime de modo
inexprimível em sua extensão
o calcanhar enfim encosta
no chão e alinha-se até o topo
do pescoço onde a carne é
enfim macia é tenra entre
teus dentes ferozes luzentes
que há tanto não me comem
a carne e eu passo fome da tua
estico-me alongando-me provando-te
tentando alcançar-te além do morro
e morro cada centímetro que não
te toco inteiro o meu corpo cuíca
não há samba sem teus dedos
o espaço é buraco e silêncio
entre nós mas eu tento
e me atiro e tiro
o pó e as teias
para que logo te dê na telha
me faças soar a música de golpe
inteiro, o movimento dissolve
lento a distensão deste corpo
ligeiro

terça-feira, 11 de agosto de 2020

(a dor)

 os cientistas ainda não testaram
qual o desbalanço químico
do choro em público
da água salgada em gota que
repentinamente entra em contato
com o ar que tu respiras tão longe
quais perigos esconde
os cientistas não sabem afirmar
e eu nego a minha úmida humilhação
e meus olhos grandes perdidos de
imensidão entre o ar daqui e o ar daí
que tipo de absurdos despertam
meus desvios será que contamino
antes que tenham tempo de desviar
e se protegerem do mal do nosso tempo
que anda tão seco e coberto cinzento
o nosso descompasso entretenimento
despetalar: a exposição em branco e preto
radiografia a fotografia da dor
desconforto não
é mesmo um sintoma

é como ar na água
a física explica
uma bolha precisa
de pressão e diferença
de densidade para
existir e ser uma bolha
do contrário ela
é só ar sem água
e quanto maior a pressão
maior a condensação
o que significa que a
densidade precisa ser
também diferente
e o que isso quer dizer?

que, quanto mais fundo
mais dentro do profundo
na escuridão do mar
no submarino um mundo
desconhecido
onde a luz não chega
mas onde tanta energia
ali comprimida:
a poesia?

a leitura o movimento
de expansão
trazer à superfície
à luz do sol
e dispersar
perder-se no ar
ser uma com a salinidade
e a umidade do mar
uma viagem de milhas e milhas
de léguas submarinas
até a impossibilidade
do retorno

como é difícil isso tão nosso
isso que nos faz nós
quem somos
a gente
tão particular da nossa
humanidade que se
se fala alguma coisa
quero dizer
se tento dizer
enquanto busco ouvir
numa tentativa de trocar
de ideia de te fazer trocar
uma ideia comigo
ou duas se a gente tiver
tantas em tão pouco tempo
não mais que duzentos mil
anos ou algo semelhante
a um número que não sabemos
decifrar e como é difícil fazer o som ecoar
produzido aqui dentro e chegar até você
e o som formado sai e toca
o ar com sua vibração e assim vai
se tremendo todo
até chegar até você e até você processar
o som já é tão difícil por si só mas é só
é só que a gente se fala
isso a fala mas como é difícil isso tão nosso
isso que nos faz nós
quem somos
a gente
tão particular da nossa
humanidade que se
se escreve alguma coisa
quer dizer
se acha que escreve e comunica e põe no mundo
algo completamente impossível segundo as leis da física
pois nada se cria tudo se transforma então
o que que a gente faz?
o quê? a gente comunica?
quê? a gente? que comunica?
comunica o que a gente não comunica?
comunica a gente comum e caminha como uma gaivota
menor ainda que um albatroz mas caminha
caminha contando os passos contando
os passos dados até aqui
contando e contando como é difícil
isso
tão nosso

na minha cidade há uma rua em que os carros param e parecem à beira do abismo esperam o semáforo e dali pra frente é só pra baixo rumo ao ho...