quinta-feira, 23 de julho de 2020

ainda os dados

... jogo sempre o mesmo dado
que me dá sempre a mesma
sempre a mesma
sempre a mesma
sempre a mesma
até que

quinta-feira, 16 de julho de 2020

é música o que

se texturiza nos lábios
teus, indassim tens calado
como um longo amanhecer
dia após dia de dias
tão quentes, também cinzentos
um gato todo sem pelos
o terror deste silêncio
teu torna o itinerário
destes dedos meus um gesto
de simples e puro medo
és não o som propagado
no vácuo deste meu corpo
és a forma mesma, a cor
denunciando na íris
ao te ver pronunciar:
rebentar ondas       ...
não és a rima que falta
e sim tudo o que deslocas
quando enunciando alta
a nota exata: o pavor
fazes-te ritmo do amor
do meu samba és o choro

sexta-feira, 10 de julho de 2020

exposta

é uma ferida aberta
a mão que agora te dou
ferida de faca agora
lambuzada de sangue
e um tanto de suor
o sangue não corre
a ferida parece parada
tomada por um éter
um modo de ser
: sendo ferida e aberta
estampada no tempo
estanque; mostro-te
carne, músculos, ossos,
as ligações cortadas
a palavra que não sai
e encontra significado
em teus lábios
enunciando o som
adequado para o momento
faço-te ver fixa (isto cometo)
a articulação atrofiada
estendo-te esta mão
mesmo assim mesmo
sendo ferida aberta
quase como uma chaga
e tu lúcido como um cometa
apertas-me entre teus dedos
cândidos

domingo, 5 de julho de 2020

cento e onze dias ecoando

a palavra mais bonita da língua portuguesa é saudade
saudade que ninguém sabe explicar o que é
e faz no máximo uma tradução meia boca
tentando dizer em línguas e palavras outras
o que só se pode sentir em língua brasileira
a palavra mais bonita da língua portuguesa foi
a mais proferida este ano que começou há tanto
tem passado tão rapidamente e ainda está longe do fim
(saudade): porque tenta-se dizer o que se sente somente
escrevo saudade de olhos fechados e olhar distante
penso na última vez em que me senti viva e me vêm à mente
mil lembranças vivas e tenho certeza que nenhuma delas é a última
nem somente minha porque vivas dinâmicas como andar na rua
escavo distraidamente e perpasso lugares atravesso e me embrenho
cidade adentro estou sentada no ponto de ônibus também esperando
enquanto ouço educadamente a história de uma mulher que esqueço
mal piso o primeiro degrau do ônibus que chega atrasado e lotado
como de costume sinto o calor de todos os corpos suspensos
em movimento sou atravessada pela violência da vulnerabilidade
de estar disponível para um encontro não planejado com um conhecido
de testar as leis da física e não ocupar o mesmo lugar que um desconhecido
que tromba comigo me conhecendo o toque ligeiro do corpo disponível
estou viva na rua vivendo estou viva nua no mundo sendo
faz frio e os dedos empedrados denunciam a demora
porque me pego pensando que tenho tanta saudade
escrevo: saudade
e apago: lembrando a impossibilidade de dizer simplesmente

saudade

I just miss you. In a quite simple desperate human way.
- Vita Sackville-West

na minha cidade há uma rua em que os carros param e parecem à beira do abismo esperam o semáforo e dali pra frente é só pra baixo rumo ao ho...