segunda-feira, 28 de janeiro de 2019

há monstros que, da profundeza de suas arrogâncias e de suas soberbas, acabam por nos ensinar algo. um dia ouvi de um monstro - que, como todo monstro e todo deus, fora inventado por algum desavisado do perigo que é lançá-los na realidade dos homens, que precisarão ser salvos pelos barcos não-afundados das crianças e mulheres, das anas e das cristinas, de todas as clarices, e de uma infinidade de raios luminosos a quem damos nomes impronunciáveis como edna ou adélia, e submetemos certas elsas e elenas ou natalias e até mesmo elviras, quem acreditaria?, à existência nessa realidade nossa - ouvi desse monstro - que resolveu falar comigo em línguas, outra invenção nossa; escolhemos uma maneira complexa e absurda de traduzir pensamentos intraduzíveis, que existem por invenção nossa também, e que existem independentes em sua realidade imaterial e desprovida de complexidade pois desprovida de protótipos de tradução; línguas que por acaso eu compreendia a música - ouvi dele - que me olhava sem me atravessar, tentando me compreender em toda minha materialidade impossível e absurda, literalmente inacreditável e inconcebível; me olhava também me atravessando, exibindo toda sua super-imaterialidade complexa demais para meus olhos e meus parcos mecanismos de tradução - ouvi - buscando colher cada som como se fosse o bago de uma uva, que intento esmagar com a ponta de meus pés e transformar em vinho, um vinho que nunca fora água; colher cada nota como se fosse um pequeno glóbulo de amora estourando de madura e que ainda não fora encontrada por uma larva ou um passarinho, já que estão todos mortos na realidade desértica acinzentada que nos cerca nesse momento; pássaros e larvas que bicariam meus olhos e caminhariam sobre minha pele na realidade luminosa da qual eu não faço parte - ouvi que julgamos nossos deuses não por sua matemática, mas por sua poesia. (e um anjo safado surge atrás da minha orelha e sussura, para quem quisesse ouvir: e quem é que sabe a diferença?)

segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

há décadas crio um cacto
delicado
esperando que me dê flor
e um pouco de cor
troco-o de vaso
admiro seus espinhos
e lhe rego com carinho
esperando o dia em que se despetalará
numa sinfonia de Bach

crio-o há décadas
entretanto
o silêncio
nos permeia há anos
olho seus espinhos
com tristeza:
ali não há beleza
é um desgosto
não há beleza
em formato tão asqueroso;

passo semanas sem lhe olhar
só para voltar e encontrar
cada dia mais espinhos
lhe nego devagarinho
me esqueço de todo carinho
*
 *
  *
te esqueces:
o que me faz cacto
não é a flor, mas o espinho

volta e meia te sentas à janela
e esperas por uma brisa velha
que nos sacuda
é quando penso: deus nos acuda
então vejo que teus dedos
sorrateiros
começam a troca de vaso

quinta-feira, 3 de janeiro de 2019

poesia

se toca uma corda, uma tecla,
ou se assopra um saxofone
a música m'embala
faz flutuar
e meu corpo
vira marionete
enquanto a palavra
pesa
e faz do meu corpo
verbete
ê
latim corpus, -oris
s. m.
[figurado]
[anatomia]
[expressões idiomáticas]

me reduz a um esquema
um cacoete
ê

eu que sou rima
quando me estimas;
verso livre
tom e meio tom
quando me deixas passarinha;
eu que sou arvoredo
peixes e desejo;
eu que quando ouço um disco
viro vapor
e onda magnética
que viaja no torpor
rítmico de uma jovem frenética
e na suavidade da cor
de uma flor de hibisco

eu
que não tenho fim
e vou
eu
que do carnaval sou confete
e das marchinhas sou
todas as vogais abertas
e semi-abertas
e sou parte do que se erra

eu
que não descrevo nem solfejo
a menos que me queiras palavra
latim parabola, -ae
s. f.
[...]
eu
que não me encerro
em vogais fechadas
que sou orquestra completa
que não obedeço
sou sinfonia e desarmonia
e sou também silêncio eu
que sou acesso
que te cruzo num ponto do infinito
que é o que
é

na minha cidade há uma rua em que os carros param e parecem à beira do abismo esperam o semáforo e dali pra frente é só pra baixo rumo ao ho...