domingo, 20 de dezembro de 2020

a. m.

eu tomo a vida é pelos dentes
e mordo arrancando pedaços
mesmo que use só as gengivas
que foi o que me restou
e a vida inteira se me inflama
ardendo por dentro no caminho
que faz pelos meus dentes
se expande feito espinho e entra
pela boca e a garganta e me arranca
a pele no trajeto até meu ventre gentil
e branco e vermelho de fúria e paixão
ali se instala querendo-me fazer morada
dentro de mim, a vida aqui dentro
feito uma explosão atravessando
veia e artéria o pulmão e o que tiver
a caminho do meu coração
faz-me tremer as pernas e suar as mãos
e é então que mordo-lhe mais forte
cravando-lhe no rabo os dentes
que me faltam, que me roubaram
os eletrochoques — me eletrizo
e faço, das gengivas, minha própria carne,
matéria de arma de guerra contra
essa tal vida que me se é imposta. e no buraco
da palavra trabalhada a navalhadas é que reconstruo
e me construo a vida, com minhas próprias unhas
esmaltadas

"dalla rovina del silenzio, fonda,
togliere la misura della voce"
— Alda Merini

domingo, 13 de dezembro de 2020

perde-se o tempo inteiro a noção do tempo
que escorre lento entre nossos dedos sebentos
de quem não conhece mais o sabor da terra
a textura das minhocas e das folhas quebrantes
de quem não sente a brisa quente entre os cabelos
e que da luz vê apenas a sombra lancinante
do que ouve apenas uma nuance do que se diz
e quando olha pela janela é apenas mais janelas
e fraturas na estrutura dos prédios que se vê
perde-se o tempo o tempo inteiro e a noção
de que há algo a ser perdido ainda persiste
como uma quimera que se manifesta entre
os vãos do chão de cerâmica já tão velhos
por entre os quais não nasce sequer um musgo
que já é um tipo de vida: reconhecidamente
desconhecida entre as paredes quentes de sol
e de concreto e antes fosse barro batido
algo que lembre outra vez a mudança
que o tempo permite mas que hoje
sente-se perdido

era uma vez um passarinho cantarolante
que cantarolava alegremente sem parar
e um dia certo dia veio a encontrar
uma mulher que lhe ouvia cantarolar
e insistia em lhe dar água para beber
e também insistia numas migalhas de
amor

e como a natureza é poderosamente
e tristemente frágil foi assim tão fácil
construir (no antes céu) ao redor do ninho
uma gaiolinha de madeira onde o passarinho
cantava desesperadamente sufocante como
quem busca num ímpeto constante criar no ar
uma fissura

mas nem o mais cruel dos deuses amantes
lhe ouve ou lhe dá atenção e o passarinho
frustrado e incompreendido e ressentido
de sua natureza e sua súbita companheira
começa a bicar e a comer o invólucro
de carne e osso que lhes circunda
que aprisiona

assim seu canto surdo se transforma súbito
que na natureza alguma forma de liberdade
há de se ter e nem que seja criando dentes
e comendo seu caminho pra fora do terror
e sujar-se de sangue e ouvir-se aos gritos
aos prantos e sentir na barriguinha uma fome
uma terrível queimante fome de pão e
um canto

quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

nem tudo tem
uma explicação
por isso a existência
o verbo
é
porque tudo são
e está explicado
o verbo
é
intransitivo
como todo verbo
nenhuma ação
precisa
tem complementação
aliás
nem mesmo uma ação
imprecisa
precisa de complement
-ação
aí a impossibilidade
de compreensão
porque o verbo
é
algo que foge
passa por nós
feito uma sombra
numa casa escura
num dia chuvoso
à noite, e as velas
que trazemos
aliás
que empunhamos
mal nos permitem
a derrota
de ser

quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

ti penso ancora,

e lo sai
é engraçado (é?)
come la parola
morente
queira dizer algo
a respeito da vida
e como la stessa
medesima
parola
non abbia o mesmo
mesmíssimo significado
em português:
que morre, que fala
da morte
mi diverte
ancora di più
pensare che non ci sia
vida sem morte
e obvviamente
morte senza vita
cioè (tu ed eu)
que i limiti siano impossíveis
ma comunque imagináveis
quindi: divertente
quase que diverge
c'è sempre un gioco
sempre sempre um joguinho
e noi proviamo ad inseguirlo
capirlo, assaggiarlo
colocá-lo dentro dentro
dentrinho
nas entranhas mesmo
perché possiamo
quando morente
averlo ancora
dentro

lo sai, vero?

na minha cidade há uma rua em que os carros param e parecem à beira do abismo esperam o semáforo e dali pra frente é só pra baixo rumo ao ho...