quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

cavo minha própria cova
finco fundo os dedos na terra
úmida
a terra me envolve e me devolve
ao meu estado original
delineia minhas linhas
e marca o começo de tudo
que voltará a ser pó

tive medo de não ser
terrosa ou porosa
o suficiente
e minhas mãos comprovam
a inaptidão do meu corpo
que de tão medroso fez-se
um bloco só
um tijolo
para casa (nenhuma?)

faltou-me o cimento
cal em pó e água
alguma consistência
que me unisse a um todo
que um dia uma bomba ou
uma retroescavadeira
destruiria
tornando-me algum patrimônio
parte de uma memória
algo de histórico

mas quanto mais busquei
sentido nas vibrações que me chegavam
no escuro desse buraco oco
mais fundo cavavam minhas mãos
não notei a lama enlaçando-me os pés
as raízes de outras árvores a arrancar-me
as unhas e os cabelos emaranhados

a tua luz frenética implorando-me
uma nova vibração, uma
transcendência, salvação
que eu
cega e surda
feito uma parade sem quadros
não sabia ainda que existia
e quanto mais a perseguia
essa luz que um dia me irradia
mais argilosa me tornava
um movimento helicoidal
eu funda no fundo e tu,
luz de meus dias, um astro
imparável, um relâmpago
que um dia outra vez ainda
se vier a calhar um destino
fortuito em que há algo de divino
me chacoalharias

mas enquanto te irradias em fogo
grito no buraco fundo dos meus delírios
de maternidade e alegria
as impossibilidades mais evidentes
da nossa agora vida;
das minhas entranhas
o que me resta de útero
sangra e se mistura à lama

preanuncio assim
o fim de uma primavera

(mas as raízes
estas
cada vez mais fundas
firmes, buscam no fundo
flores, frutos: fecundo)

um brilho ainda
a luz íntima
do nosso mundo

e irradiamos
o calor profundo
para que possamos dizer
sonho lúcido:
semente.
muito mais do que raízes.
eu
tu
árvore
fruto folha caule
raízes
e também
todas as sementes

uma cova
nada mais é
que um buraco quente

terça-feira, 10 de dezembro de 2019

sol e sal em escorpião

cientistas afirmam que
dois corpos não ocupam
ao mesmo tempo
o mesmo espaço
 — mas o que sabem os
homens de ciência?
afirmam que há eternamente
uma distância infinitesimal
entre um corpo e outro
desconsideram que o fora
existe por haver o dentro
em simbiose
cohabitam o mesmo espaço
(nossos olhares fugidios)
— que sabem os cientistas?
em meio a tantas afirmações
esquecem-se do negativo
o vazio
que une tempo e espaço
(e permite-me tocar os teus
dedos macios e irrequietos
permite-nos avançar no vácuo
ultrapassando a velocidade da luz
calculada há tantos e tantos
milhares de segundos
permite-nos
uma simples
possibilidade
incalculável
impenetrável em seus mistérios
em suas vias de saída)
uma matriz não sabe
(o que se passa entre o calor
da minha pele e da tua)
não sabe
o que é capaz de transformar
o verão numa nova estação
inomeada e atemporalmente intangível
não sabem os cientistas
o que tocam nossos olhos pela manhã
fugidia
não há plano laboratorial incansável
de observação incessante
que compreenda o espaço
e o tempo que nós
permeamos

domingo, 8 de dezembro de 2019

sol e sonho em sagitário

se eu acordasse todos os dias
com tuas mãos macias
me estendendo pitanguinhas
avermelhadas doces suaves
uma explosão de manhã na minha
boca sonolenta, eu te diria
que em dias assim, como um
domingo de dezembro em céu azul,
eu não sinto falta de café
porque posso me deixar levar
pela preguiça do dia escorrido
a brisa do mar e as formigas calmas
que passam pelos nossos pés
a espiar nossa vontade de viver;
porque posso sentir a grama se esquentar
com o calor dos nossos corpos estendidos
como pontos desimportantemente infinitos.
se eu acordasse todos os dias pra te ver
passar os olhos pela natureza que te contempla
eu não sentiria falta de dizer
o que o tempo faz comigo
porque ali, naquela manhã verde dourado,
a tua pele bronzeando o sol antigo,
a ilusão cotidiana não seria nem mesmo delírio
e o onírico seria o nosso dia a dia
com espaço para criar nossos filhos
que reluziriam teu olhar acobreado
e as mãozinhas avermelhadas
de frutas, adoçariam os jeitos de ver:
como é bom viver
e acordar contigo aos domingos

na minha cidade há uma rua em que os carros param e parecem à beira do abismo esperam o semáforo e dali pra frente é só pra baixo rumo ao ho...