terça-feira, 31 de março de 2020

pele sobre pele

o único verdadeiro aliado dos meus escultores
são décadas de chuvas ácidas
—Tatiana Faia

a pele como que em pedra perfurada pelo tempo
e a ação ideal de uma mão ansiosa que não se cansa
de pensar tatilmente de buscar incessantemente nos poros
no corpo no cabelo no couro do outro um pouco de repouso
um pouco de alento para preencher e colmatar o espaço vago
ao redor da pele que delineia e filtra o eu e o fora: uma membrana
em decomposição mas ainda ativa e vez em quando consciente do sopro
de vento e tempestade que passam por suas retinas. o tempo abranda
a pedra rochosa em sua dureza e impenetrabilidade mas não a faz
menos pedra menos rochosa apenas menos dura em sua maleabilidade
o tempo não cura como costumam dizer quando encontram alguma ferida
o tempo não cura e não poderia jamais curar ou cicatrizar o tempo apenas marca
a transformação de ferida aberta que pulsa em sangue quente que corre
pela pele contornando a parte de fora do corpo agora mais macio em sua coerência
marca o tempo apenas a marca que eventualmente fica: a cicatriz
feita sem agulhas nem linhas apenas deixando de ser ferida aberta
fechada pela ação ideal de um corpo em movimento constante um tecido fino
delicado que forma o envoltório de órgãos mais sensíveis do que a pele bruta
feita de pedra bruta rochosa às vezes porosa que pela ação e pelo tempo
transcorrido transforma-se num corpo sensível. a pele lapidada com uma lâmina
delgada vai tornando-se a cada golpe ela também mais sinuosa e delgada
deixando passar dentro e ao redor contornada a ação violenta de um tempo
que escorre lento pelos dedos de uma mão ansiosa e cansada de pensar
com a ponta deixando a marca de suas digitais e cansada de buscar
incessantemente a forma ideal de um corpo sensível: luminoso.
o tempo é evidente em sua não-ação e deixa ver aos olhos sensíveis
a formação deste novo corpo que se apresenta ainda não terminado
mas jamais resguardado jamais enterrado num museu
jamais insensível à ação das chuvas ácidas e da corrosão
do calor do sol e da erosão do vento na pele suavizada
jamais um corpo de pedra: ser um corpo com o tempo, são

quinta-feira, 26 de março de 2020

1.
esta mulher que tu vês fumando na sacada
nesta manhã cálida de inverno espaçado
uma mão repousada nos joelhos ralados
a boca que vez e outra se entreabre vulcânica
os olhos sobre alguma montanha
que preenche o horizonte verde
e azul de céu de ritmo preguiçoso
não é a mesma mulher que ontem te disse
que a vida é o momento que se vive
e nada além; não é a mesma mulher
que despiste e te olhou como quem se esquece
das montanhas escondidas no céu noturno;
não é a mesma, esta mulher aqui amanhecida,
toda a pele iluminada em saudade, e a imagem
que te atinge os olhos não é a mesma que esperavas
quando os abriste nesta manhã inesperadamente ensolarada
não é a mesma que crês ter sonhado a noite passada

2.
o vidro que te isola no quarto bagunçado, o véu
que acreditavas caído por terra, é a mensagem que entendes
é a mensagem que te chega em diferentes linguagens
é o espaço, aquele, que não sabes se podes cruzar
que não sabes se teus pés serão capazes de atravessar
e encostar o chão gelado que a circunda e que se expande
com o calor da pele da sola dos teus pés e dela
que te olharia como quem não contemplava há pouco
a indiferença perpétua das montanhas cobertas de verde
como quem já te esperava chegar para dizer bom dia
sorrindo todo olhos e a boca muda de quem espera
mas tu não sabes, porque o movimento não chega

3.
a mulher que te devolve o silêncio carinhoso
não é a mesma que atravessa o vidro em imagem dobrada
mas assemelha-se à imagem que tens registrada na retina
ferida pela claridade que a invade improvisadamente
no fundo dos teus olhos de castanha sabes que a vês
e a entendes como aquilo que é e parece ser

domingo, 22 de março de 2020

every moment happens twice: inside and outside

(lendo Zadie Smith)
sobreponho duas imagens:
a minha mão descansa no teu peito
liso, e a outra mão na minha mão
o teu braço me envolve até a cintura
e a outra mão repousa no colchão
um salto no escuro do tempo
sobreponho dois momentos
eu deitada em você
eu deitada ao seu lado
o sono que me vem escasso
o sono que me vem espaçado
o sonho que me retém
o sonho que antevém
sobreponho dois corpos (atrasados)
o meu em cima do teu
um ao lado do outro
sobreponho meus dedos
que não titubeiam: te tateiam
sobreponho meus cílios
que se curvam com o silêncio
mas não os oponho
como num espelho quebrado:
vejo partes de um, partes de outro
um reflexo em construção
mas talvez seja o cenário que esteja errado
: uma cena nunca se encerra 

sexta-feira, 20 de março de 2020

quando rufam os tambores
dentro dentro das entranhas
abertas apertadas alucinadas
quando rufam os tambores
e a caixa toráxica não sabe
sambar no ritmo da batucada
o corpo todo estremece
como quem não sabia
da chegada do terremoto
ou da lava do vulcão
que começa a se espalhar
pelo ar e pelo chão
o corpo todo se agita
como quem de repente
se vê no meio da bateria
e se lembra de novo
que não sabe mesmo sambar
quando rufam os tambores
e a mulher se deita sentindo
o peso morto do piano de caldas
sobre o peito de vidro
o mar se rebenta
e volta a rebentar-se
na praia vazia deserta
de fim de verão
hoje ainda mais deserta
a batucada acelera

terça-feira, 17 de março de 2020

o estado das coisas

um homem abre a janela
como quem toca o amor a primeira vez
contempla o mar em fúria
que se agita desde o horizonte em fuga
e resolve aqui se quebrar
a água invadindo para além da praia
quem lhe poderá salvar desta lembrança
impregnada na memória como
areia que se torna vidro
o homem abre a janela
e pela segunda vez vê
a janela abrir-se
diante de si
o mar a rebentar-se
com a mesma lenta
violência da primeira
vez, que se repete
abre a janela e vê
simplesmente
que é o que se pode fazer
quando o mar põe-se
a rebentar-se
em você

sábado, 7 de março de 2020

mi piaci da morire

inzuppare é uma palavra quase
técnica, distante léguas
do ato de totiar, potiar: da pucciare.
é como a limitante explicação-definição
de um engenheiro sobre
o que é o empuxo, sobre o que é
enfim sentir-se leve
o movimento de imersão
violento (tuas mãos no meu pescoço-pão)
leve (eu puxo o teu corpo são)
lento (o ritmo sagrado da refeição)

ensopar é a palavra-distância
exata que percorrem os teus
olhos castanhos demasiado
esverdeados (uma folha num lago)
lentamente dos meus joelhos nus
até os meus olhos castanhos cansados.
os teus lábios em curva:
niente, veramente niente;
dizem-me sem nada querer
dizer que as línguas se aproximam
(mesmo sem nunca se tocarem?)

pucciam'
eu pão-macio
o café tu diz: sudicio
água sporca, o café
meu, e todos esses
tão dormidos quanto eu
: nada. sem leite, só água.
a tua língua gritando: por cappuccino
; de manhã cedo
eu café passado

inzupparsi: precisão exata
do que nos deixa As Marcas;
precisão-medida do abismo
entre nossas línguas;
imprecisão do movimento:
afundar-se lento, empuxo violento
ensopar-se num mar sereno.
ensopados — a gente se ensimesmando

na minha cidade há uma rua em que os carros param e parecem à beira do abismo esperam o semáforo e dali pra frente é só pra baixo rumo ao ho...