sexta-feira, 14 de outubro de 2022

putrificada

embora a ferida insista
no processo de cicatrização:
a vontade de lamber sangue

a unha imunda
de terra suor catarro
cutuca a casca arranca
as bordas primeiro
secas prontas
vão-se embora
então às pressas
sedenta em ânsia
de vermelho quente
enfim devagar lambe
a língua semi-saciada
casca sangue
sangue pele
guspe sangue
sangue sujeira
pele guspe casca
vermelhos e vivos
ainda um pedaço de vidro

purificada se levanta
os joelhos lindos
as mãos: um transe

na boca, a língua dormente
sangra

terça-feira, 11 de outubro de 2022

tive um filho
chamei-o ibérico
pela piada pelo humor
pela violência
principalmente
pela falta de graça no moleque
ibérico cresceu papagaiou-se
a todos sempre dizia
olá chamo-me ibérico
olá chamo-me ibérico
conhecia o toque da relva
e a textura do marítimo sal
— quantas lágrimas ó roberval —
dizia a todos sempre
ibérico é meu nome
ibérico é meu nome
um belo de um dia mamãe
a mão espalmada
dá-lhe um tapa na nuca
e resmunga rindo-se toda
calaboca ô américo

quarta-feira, 5 de outubro de 2022

se de repente eu me lembro
de olhar para as estrelas
e deslumbrada ver o
passado tão radiante
que me
fere
os olhos
passado evidente-
mente morto
ou
ao menos
já tão distante
tão certamente fora de
minhas mãos miúdas ainda
que ao alcance de meus
feridos olhos marejados

a visão é um vacilo

ali
escondido entre constelações
estrelas há muito idas
sei e sinto sem ver
a tua presença
o teu perpétuo brilho
no vazio do céu noturno
a evidente ausência
do meu cometa
que passou
e continua
sua rota
cósmica

educa-se pela pedra
na superfície rochosa
escreve seu nome
quatro letras curvilíneas
saem pela boca
fundam a existência
na casca áspera
da pedra dura
a mão lisa
calejada de infância
joão ainda criança
homem como quem
toca o mundo
pela primeira vez
e ali mesmo
ele se desfaz

segunda-feira, 3 de outubro de 2022

faz tanto tempo que tu
não me olhas
não me ouves
não me tocas
e todas as folhas
que caem desde o outono
me lembram de ti

não tanto pela queda
pela separação
o corte necessário


por perderem a cor
por se desmancharem

é a tua voz que escuto
rouca distante abafada
a chuva que bate
afoga o teu timbre
bate e afoga
a tua voz nas ruas
molhadas vacilantes


afogadas
pluviais
sazonantes
torrenciais


lentamente
afoga e cai

nessa umidade
minha cabeça trovoa
no lampejo te vejo
iluminad'as
tuas mãos

não me tocam

fechadas
 

grito e não me ouves
não me respondes
não vejo teus olhos
sei que não me olhas
meu grito ecoa
afogado
as ruas molhadas
até a tua casa
é um
eu morro

a minha voz
os meus olhos
o teu suor
não chegam
onde estás
teus olhos de menino
silenciosos
já os cabelos em pérolas

me pergunto
não me escutas
não me ouves
não me vês
não me tocas
a pele

sou a despelada


ali
apertada espremida entre
as tuas mãos molhadas
afogada
a pérola?

domingo, 2 de outubro de 2022

se eu pudesse costurar
neste tecido a sensação
de estar ao teu lado
ainda talvez enfim
criasse couraça

na minha cidade há uma rua em que os carros param e parecem à beira do abismo esperam o semáforo e dali pra frente é só pra baixo rumo ao ho...