quinta-feira, 29 de outubro de 2020

no princípio havia o Desejo
e o Desejo estava em tudo
nos passos lentos da travessia
na curiosidade de reconhecer
no movimento de partida
e de chegada ao mesmo tempo
e então veio o Tempo e fez à força
o que o Tempo sempre faz
e onde Antes o Desejo
passeava livre -- sendo apenas --
agora o Tempo passa a duras penas
faz escorrer e dilatar qualquer
emoção e nem mesmo as sensações
sobrevivem à ação e os passos
não se preocupam com o movimento
não se parte nem chega apesar
da ilusão de travessia
reconhece-se o tudo
e Tudo é o Tempo
e o Tempo e o Espaço
fundidos no tecido do que Antes
foram linhas do Desejo, aqui


a Espera é infinita

la poesia è fatto di liberazione, non di riflessione
[...] il tempo nella poesia diventa volume del cubo; cioè
profondità tramite le attesa-spazio tra verso e verso.
Amelia Rosselli

sábado, 24 de outubro de 2020

MEMÓRIA

encrustado de areia
o sabonete não lava
da pele o salga-
do...

domingo, 18 de outubro de 2020

domingo desmanche

deito sob o sol
sobre o chão de taco
e me estendo como tapete

vou pensando no que me acome-te
respondendo às perguntas: empilhando-se

e pego no sono
como quando menina
há uns vinte anos
sentindo-me muito mais
o abismo temporal entre eu
e eu mesma então, no Antes

sonho a praia
meu corpo se estendendo
todo sabendo-se parte da areia
e do mar que me invade dentro
as pernas arregaçadas
despreocupada estrela do mar
a pele empanada deixando-se banhar
feito fosse mesmo criatura do mar
feito fosse água-viva em praia de banhista
e sinto-me inteira totalmente
des/pe/d/assada um pedaço
em cada parte da praia
completando-me somente na paisagem
impossível aos meus olhos de sereia cegados
e vou sentindo o vento a queimar meu cabelos
a criar-me rugas precoces na pele de verão
escamosa como nunca Antes
o corpo jogado inteiro no chão
imóvel, imobilizado, esperando a onda me lavar

feito redemoinho
feito rede e, claro, moinho
diversão e desespero
a boca bem grande tentando beber
toda a água para enfim ser-
mos o mesmo mar

acordo ensopada de sangue
enxergando o mundo todo azul
feito ainda fosse menina
um pouco menos cretina
: ainda inteiriça

sexta-feira, 2 de outubro de 2020

olha desde atrás, ao redor, e enfim até a frente
tudo o que seus olhos são capazes de alcançar
a vastidão que o rodeia e o penetra e o ultrapassa

acende a ponta do cigarro filtrado que o invade
vai caminhando aceleradamente até penetrar
bem fundo seus pulmões ali se embrenhando

(antigamente há alguns meses ainda se ouvia
o choro a tosse e a fome da criança que sentia
a morte que pacientemente podia lhe cheirar)

descobre enfim um momento de contemplação
vê o fogo ainda se espalhando longe e reflete
sobre sua existência e sua capacidade de pensar

em si mesmo e em tudo que fez
resultado: agora é fogo e cinza e morte
lembra que esse é seu trabalho

e nesse instante sorri
: isso aqui é minha riqueza
mas que beleza! apaga a bituca e ri

a terra enfim devastada

quinta-feira, 1 de outubro de 2020

será o que será que será

será?
que quando toda planta que houver
couber em nossos apartamenos pequenos
em nossas janelas mal-ensolaradas
ou muito-esturricadamente-ensolaradas
nas sacadas de vidro e concreto
cercadas apenas dos animais
que salvamos: nossos gatos
cachorros e periquitos
um peixe solitário
num aquário de água
sufocante do que restou;
enfim nos sentiremos
aquilo que somos?

será?
que quando toda umidade do ar
evaporar de nossas lágrimas cinzas
de chuva ácida e óleo diesel
e nas plantas envasadas
pousarem apenas as moscas
que sobrevoam nossos já cadáveres
sedentas e sobrevivendo em
círculos pelo piso frio onde não
bate o sol, onde caminham as baratas
pós-apocalípticas; e toda brisa que bater
for de terral carregando nossos
estilhaços putrefatos conservados
em pequenos potes de plástico
enfim nos perceberemos
enquanto aquilo que praticamos?

será?
que outro dia que amanhecer
dourado reluzente de dor e morte
de poluição e queimada e fumaça
que vem de longe e entra pela janela
e a luz que afaga as pétalas as folhas
os pequenos raminhos nos vasos
for filtrada pelo apocalipse ecológico
que causamos e não paramos
porque continuamos: vivendo
será que enfim quando queimarmo-nos
e poluirmo-nos -- tudo o que há em nós --
em tons de laranja e cinza pútridos
então finalmente veremos claro cristalino
como num espelho de água que não possuímos
aquilo exatamente que nos torturamos?

então
nos veremos
enquanto
o que somos?
o que sempre fomos?
o que se está se tornando?
o que será que seremos?
o que será que será se será?

na minha cidade há uma rua em que os carros param e parecem à beira do abismo esperam o semáforo e dali pra frente é só pra baixo rumo ao ho...