domingo, 13 de setembro de 2020

o rastro

o contorno do meu corpo marcando a grama
por pouco tempo depois de tirar dali o peso
e dar espaço para insetos ali rastejantes:
o movimento enfim livre: é a mesma leveza
de quando me levanto do teu corpo macio
que há tanto desejo
e espero em silêncio
é com a mesma ligeireza da grama quando
me levanto que perde teu corpo suado
o calor que de contínuo emano
do meu e a breve lembrança não dura
mais que alguns suaves suspiros cansados

já é dia e há tantos dias que nossos corpos não
marcam um no outro brevemente nossos
contornos imaginados, e um corpo se confunde
enfim com outro como que atravessando o tempo
— no mesmo espaço-tempo-caixa de memórias —
nos fazendo confrontar o impossível:
dois corpos que ocupam sem medo
o mesmo espaço-suspiro
mas raia o dia pela janela de vidro
e concreto: nossos olhos marejados de cansaço
a caçar o calor da noite: em que braços?
e há dias em que o dia amanhece em silêncio
nem mesmo o canto dos pássaros: - - -

da reminiscência de quão breve é o voo
do meu corpo sob o teu: sobra o meu
silêncio em ninho a fazer-se miúdo
e vê na janela o desenho úmido
de teus dedos tímidos
num adeus
que é quase
surdo

sexta-feira, 4 de setembro de 2020

i.
o espelho estilhaçado no chão
e não importa quantas perguntas
eu faça insistentemente de novo
e de novo incoerentemente ecoo
o espaço vazio e cinzento entre
um breve reflexo e outro molhados
por lágrimas inconscientemente
inconsoláveis que não formam sequer
um mosaico um painel de arte
se me esforço e penso eu minto
e chamo a desgraça de colagem
arte em sobreposição absurda
em suas linguagens em meus
silêncios perenes ecoando o meu
grito: desespero incompreensível
ao ver em meus reflexos tantos
pedaços sem compreender a imagem
final porque a cada instante que tento
compreender o todo o todo se desforma
a cada instante de novo e de novo
e a vibração da imagem refletida não
reúne ou dá a ilusão de completude
entre os estilhaços: sou eu aquilo que
me vejo e aquilo que me olha de volta
e tudo aquilo que não vejo nem me olha
sou eu o tudo incompleto opaco estilhaço
em construção e o desespero de não saber
sou eu

ii.
tento outra vez uma aproximação
uma outra angulação que me sirva
como ponto de vista de todo novo
então tiro os calçados e a meia e
me atiro de pés inteiros no espelho
já despedaçado: nenhum estrago
e com o sangue que escorre
desenhando como que magma
passeando por terra a primeira vez
percebo enfim as fissuras que separam
c a d a  e s t i l h a ç o  num desenho
mágico selvagem como um rio
é impossível dizer que rumo o sangue
escolhe seguir mas escolho assistir
ou como muito me ocorre deixo a escolha
me acontecer enquanto inerte respiro
um suspiro de cada vez e o sangue
já é muito e se alastra e parece dar corpo
e cor à opacidade que impede o todo
e aí sou alcançada por uma iluminação
: não sei como o espelho se estilhaçou
quem sabe foi estilhaçado ou venha assim
de fábrica quem sabe o espelho só é espelho
quando enfim se vê: estilhaçado
sem origem razão ou finalidade é feito
do que não é possível consertar e
enquanto o sangue segue fazendo
desenhos percebo-me impossível dizer
atribuir a origem a alguém é só
insensível querer obrigar a dizer
quem

o relato que posso fazer de mim mesma tem o potencial
de se desintegrar e ser destruído de diversas maneiras

— Judith Butler

na minha cidade há uma rua em que os carros param e parecem à beira do abismo esperam o semáforo e dali pra frente é só pra baixo rumo ao ho...