quinta-feira, 27 de abril de 2023

teu amor feito navalha
me escrutava o corpo
obediente e quieto
me abrias a pele
em mim buscavas
alguma lacuna
onde te enfiar
meu corpo se habituava
serenava o sangue fluía
lento e quente e vivo nas tuas mãos
enfim quentes ainda que também
sempre muito trêmulas
tinhas toda a confiança
dentro de ti
mas te traíam as mãos
hoje passo os dedos pelas cicatrizes
que me deixastes corpo afora
então me sinto sempre
e não sei o que fazer
com elas que me preenchem
toco com todo o cuidado
para evitar que se abram
mas sempre noto apenas
um grande buraco
então me sento sempre
e me pergunto se
na ponta dos teus gumes
de cirurgião descuidado
ainda lambes
minhas partes faltantes

segunda-feira, 17 de abril de 2023

(de uma discussão no tuiter)

essa é a cara e o corpo
mas principalmente o vestido
e a maquiagem dessa tão odiada
comentada vendida consumida
adorada poeta, então
sejam mais humildes seus feios
foi o que li e traduzi livremente dum tuite
com uma foto da rupi kaur no auge da sua beleza
no mar de visualizações alguns comentários
e entre tantos iguais um irônico
mas finalmente não maldoso
em que se lê
a sua beleza
não tem
nada a ver
com a sua
poesia
e em português fica até mais bonito
apesar de menos prático que o inglês
mas aqui a beleza vê e em inglês looks do
byung chul han também quer retomar a ideia
de que a beleza faz ver
e numa resposta a esse pobre desconhecido
que pode ou não saber que não pretendi nenhuma falsa ironia
apenas preferi a sua resposta
às outras 578 que li
e aqui me sinto quase imitando não sei
marilia garcia ou matilde campilho
pela precisão do número
a imprecisão da palavra
lhe disse
será
que não tem?
o capitalismo
tem muitos
frutos
e as suas sementes
estão por toda parte
da estética
à estética
em inglês fui menina
bears fruits e bear's claws
em português me obriguei à seriedade
dos frutos e sementes
e até pensei em fincar raízes
mas não fui tão longe
não cabia
na estética
da crítica
em 280 caracteres
mas isto é um relato
quebrado em versos
então poderia ter ido até onde eu quisesse
e discutido melhor os últimos dois versos
ou o que tem a ver o capitalismo
mas eu jamais
faria isso

o mar batia forte contra os rochedos
era dia de iemanjá e então não tínhamos mais medo
como estás em todas as pequenas coisas
era também teu aniversário
e por baixo da fúria das ondas
não havia criatura alguma
tudo era calmaria sob o manto real
então sobrevoava o mar desejando
ali mesmo me afogar
a ver se te encontrava lá no fundo
sentado de pernas cruzadas
tu ainda menino
a bermuda azul que sempre usas
nos meus sonhos
as pequenas imaculadas mãos
que nunca me tocaram
a recolher conchinhas
como quem colhe pitangas
no quintal de casa num domingo de calor
nem te aperceberias da minha presença
te olhando e desenhando
essa impossível memória inexistente
então nem me afogo que é pra não te tirar a paz
mas tu
tu continuas ali
sob os cuidados dela, a te guardar

segunda-feira, 10 de abril de 2023

tenho plena certeza de que entendestes
a ironia de drummond quando diz que
o poeta
declina de toda responsabilidade
mas tenho uma certeza ainda maior
como se pudesse mesmo mensurar
de que dentro de ti escondido
numa floresta uma pedreira um verme
em cima de uma pedra
ali
está esse verso inteiro
ecoando

e que ninguém duvide
dentro de cada um de nós
há um pequeno verme
de poesia
comendo comendo corroendo
cada uma das nossas
certezas

o poeta
um verme na marcha do mundo
declina de toda responsabilidade
como uma pedreira uma floresta capitalista
promete ajudar
com palavras intuições símbolos
a destruir suas e outras formas

ecos
de um amor distante
perdido
a mulher
na beira do lago
o altar vazio
os joelhos ralados
as mãos sangrando
cheia de cacos de vidro
o altar quebrado
um silêncio terrível
reverbera em seus cabelos

terça-feira, 4 de abril de 2023

hoje por acaso encontrei uma folha
uma lembrança de nós
na minha letra apressada te escrevi
num caderninho que ganhei
de uma amiga que foi pro chile
e lembrou de mim
a capa de madeira
tem um poema do neruda
que eu nunca li
mas diz assim:
Meu amor,
Tem pão e cookie.
-> R = requeijão, tem leite cond. e melado tb, e manteiga
Tem café na xícara.
Tua cueca tá estendida.
Bjus ♥

ps (a lápis, depois): a sanduicheira funciona na cozinha

pps (em caneta preta, antes): o pote de vidro é o melado que separei p/ vcs

o verso da folha
em branco
e assim o restante

domingo, 2 de abril de 2023

de mim fugistes tanto
como peixe liso
te descamas
às mãos
aos olhos ao nariz
mas não te enganes
te farejo e logo te vejo
te olho no fundo dos olhos
da memória:
a mim não me escapas
daqui

certo pavor me assola a memória
loving you is never enough
i'm a wild card

é teu nome em carne e dentes
a me comer a pele
o cérebro os olhos
me lembro de repente
do calor que de ti vinha
e tenho certeza de que minha pele
é hoje couraça dormente
então não é pela pele que me vens.
me lembro logo de todos os espaços
que vivi em ti
me penetravas inteira sem receios
e em mim fazias morada
tu, minha baía imensa
you go on forever
you're just like a river
me escapas como água pelas mãos.
me lembro pouco de como
me comias os pés sem medo
de mim fazias banquete
te fartavas e 'indassim
passavas fome de mim;
me lembro bem pouco já
do teu toque macio no meu rosto
das palmas das tuas mãos a me segurar
e nem me lembro de como me sentia inteira
toda tua ali em tuas pequenas mãos magras
e sei
não é pela pele que me vês.
a minha única e última certeza:
de muito pouco não me esqueço
e isso me apavora

na minha cidade há uma rua em que os carros param e parecem à beira do abismo esperam o semáforo e dali pra frente é só pra baixo rumo ao ho...