terça-feira, 30 de junho de 2020

caminhei não sei quantos dias num deserto árido
dentro de debaixo de um sol extremamente pálido
comi e bebi de todo tipo diverso de cacto
furando o céu da boca com espinho
procurava paciente o amor calminho
tropecei-me numa pedra no meio do caminho
agarrei-me a um tanto de vento no ar
e caindo de boca quebrei os dentes
da frente de ar fria que vinha em brisa de mar
senti o sal se misturar ao sangue
isto é, o fogo ao ferro, cuspe em barro
juntei a terra vermelha na mão direita
formei imagem imperfeita
o tropeço me arrebentou os joelhos
e os tendões ainda hoje latejam
feito não tivesse ainda me recuperado
do baque de ter achado ao acaso mangue
na queda me veio um lampejo
feito se de repente um trovejo
e foi aí talvez: então te vejo
a atmosfera que me segura
enquanto também me puxa
quase um balancejo
mas a história é a mesma uma
caí de boca em sangue poça
mangue moça de gracejo espinho
em sangue abrindo o caminho

segunda-feira, 29 de junho de 2020

a cabeça todo um         escoar
de ondas do mar que ou
secaram em vapor ou um
milagre se operou; os
olhos como de
ressaca em dia
      de ano novo:
oferendas para a rainha
a flutuar no
seco entre tanto
mijo cuspe porra sem
camisinha pra contar história
à cabeça uma                         lembrança
morta de vida
                a cabeça coroada
da testa até o nariz
                         a ponte como
por sobre o iguaçu embaixo
         só carcaça barco      náufragos
   o rio   o  mar   um   movimento   só
de quem
                                                                       ressurge

quinta-feira, 11 de junho de 2020

há já não sabemos mais quantos anos escavam
novos solos em pompeia em busca incessante
por novos afrescos e pedaços-lembrança
de uma gente e sua vida esquecidas
escavam escavam escavam remexem
a terra e reviram o solo em busca de algo
novo para relembrar a tragédia-crença
de quem, crê-se, não teve tempo de salvar
a si e seus entes queridos e seu tempo
suspenso eternamente em afrescos
coloridos de vermelho amarelo
às vezes até azul e verde
escavam com cuidado que é para que
os afrescos sejam preservados e possam
ser transferidos para as paredes do museu
onde ficam organizados em salas com suas
plaquinhas de letras miudinhas que tentam
tatear um passado intocável inalcançável
ainda incansavelmente escavam e arrancam
paredes mas não todas que é pra ter gente
passeando por pompeia no presente
pensando no passado enquanto experiência
sensível da imaginação numa dinâmica
impossível; num mesmo movimento-outro
há 87 dias comecei a minha escavação
e com as unhas ou instrumentos menos
sensíveis arranco das minhas paredes
a tinta creme queimado em busca
de um passado anterior a estes 87
dias de casa sala quarto banheiro
cozinha e lavanderia gatos e plantas
e tanta tela tanto trabalho virtual
na busca-ânsia por esse passado que não é
não pode ser meu porque a tinta
é grossa de memórias de quem aqui viveu
e eu sou tão jovem ainda que isolada sozinha
nessa busca que tanto me cansa-desespera
há oitenta e sete dias repetidamente
iguais minhas mãos mecânicas cavam
escavam e arrancam lascas inteiras
pedaços miúdos violentos no salto
sem criar memória expondo por baixo
uma parede de tinta nova-anterior em
branco

sábado, 6 de junho de 2020

leite derramado

preciso de um papel ligeiro
leve como se fosse de um livro
velho e desgastado por levar
a muitas mãos algo que fazer
preciso deste tipo único
de papel que não se encontra
mais para dizer sobre você
como nasceu e onde viveu
quem te bateu e puniu
por tudo que lhe fez
preciso de um papel ligeiro
para escrever e me pergunto
o por quê já que ninguém
lê aliás ninguém
me lê
aliás ninguém mais
sabe de você porque não lê
e se eu soubesse pintar
ou desenhar fazer colagem crochê
precisaria deste mesmo papel ligeiro
para bordar na superfície
atravessar com a agulha do pincel
as palavras que fizeram você
esquecer quem é ou melhor
que fizeram você pensar quem é
e eu pegaria este papel
e o amassaria muitas
vezes depois que você o lesse
porque eu preciso apenas
que você entenda se
é preciso mesmo
alguém vir
te dizer
quem é
você

(como se seu sangue tantas vezes
derramado não cantasse
seu nome lembrando
penetrando a terra
subindo pelas árvores em seiva
queimando no sol sua pele morena
bronzeada com sua marca)

[ como
se sua língua tantas vezes
cortada não tocasse
cada dente seu
atravessando os espaços
certificando-se que ainda
está em casa em sua
boca ]

{
como se seus olhos suas mãos
a ponta dos seus dedos
não reconhecessem
esse papel
lido e relido
porque foi você
quem escreveu
e escreve
a história que vão contar
}

na minha cidade há uma rua em que os carros param e parecem à beira do abismo esperam o semáforo e dali pra frente é só pra baixo rumo ao ho...