domingo, 16 de dezembro de 2018

vilania

A sereia de Romas Vilčiauskas, à beira do rio Vilnia
uma mulher não pode
nem se sentar à beira do rio
deixando a vida passar
com a correnteza da água
que quanto mais gelada
mais faz as escamas brilharem
quanto mais turva
mais as faz trocarem de cor
quanto mais torrencial
mais as faz parecerem diamante
no fundo de um rio africano;
esta mulher não pode
nem se sentar à beira do rio
deixando a vida passar
com a correnteza da água
pensando nos peixes que há
em alto mar
em águas
mais geladas e turbulentas
mais turvas e caudalosas
que as que lavam seus pés
em águas
mais azuis que os olhos de deus
mais negras que a pele de deus,
se deixando levar por delírios
de peixes escamosos como eu
de peixes e águas-vivas com cores
diferentes das minhas
me deixando embalar
os cabelos pelo vento suave de setembro
com cheiro de sal e verão
com gosto de sangue fresco e trovão
me deixando lavar
pela chuva que é mais torrencial
que este rio que banha meus pés;
a mulher não pode
nem se sentar à beira do rio
deixando escapar um suspiro insuspeito
cantarolando o som secreto das sereias
sussurando travessuras
soltando o riso
se sentindo feito um passarinho
...que vem alguém
e me transforma em pedra --
a mulher que via o rio
e a vida passarem
tem seus cabelos petrificados
suas escamas transformadas
em pedra opaca e sem cor
sua magreza e seus peitos
transformados em lenda
de alguma sereia
seu canto
no encanto
de alguma sereia
o suspiro
no silêncio
de outra sereia
pelas mãos de um homem
que a quer esculpir
com cabelos de serpente
e olhos de angústia
se esquecendo que também ele é peixe

quarta-feira, 5 de dezembro de 2018

*

expõe tua pele e põe
pra cima um punho
preto, pardo --
cor nenhuma
põe pra cima
um punho
e basta
expõe tua pele
teus braços e
pernas nuas
nas ruas
feito fosse estátua
feito fosse uma força
incontida e feminina.
expõe -- dá um grito,
um urro, um berro,
um murro, um assovio,
um canto materno, feminino...
abre as portas do teu quarto
e deixa o vento entrar, levantar poeira
dar espaço para os espíritos que batem à soleira
e não se cansam de esperar à porta, sorrateiros.
escancara as janelas com força e cheia de riso
(é quase um rito)
arregaça o peito,
põe os braços pra cima,
o punho firme,
(nenhuma
desgraça é maior
que não expor a
própria pele
não
se deixar tocar
pelo vento
e à brisa
e à maresia
se deixar corroer)
empunha o punho:
cheio de graça

na minha cidade há uma rua em que os carros param e parecem à beira do abismo esperam o semáforo e dali pra frente é só pra baixo rumo ao ho...