domingo, 19 de agosto de 2018

caroço

os pêssegos apodrecem nos bosques:
tons de verde e vermelho se misturam
a minhocas terrosas, a orugas;
estes braços encouraçados foram
noutro momento tão exuberantes
agora, este barro em nossos pés
um rumo


o suco
que se espalhou por tudo que era poro
seco, deixa-se grudar de fuligem
e restos de folhagens; nós à margem
os enlameados, os lamacentos
lamentos: por ora, predomina aqui
o crepúsculo

o sol, já quase ido, nunca fora
erguido: fora a ponta de teus
dedos esguios que outrora aflorara
uma aurora

emaranhada
em teus cabelos e olhos castanhos;
agora não nos veem: qualquer ânimo
é engano

precoce, a suave e doce textura:
testamos os ossos de nossos duros
temperamentos

resta-nos, agora, a esta hora
premeditada, a suspensão do tempo
de pêssegos insurgentes, vindouros,
violáceos, tão antigos e distintos
não distinguimos os pêssegos de ouro
de outros: nada brota do caroço.

dos bosques, um último sopro, um
agouro, é o rio turvo que nos leva
sem norte
à morte

sábado, 11 de agosto de 2018

A louca da porta ao lado, Alda Merini



O amor,
aquele que busco
decerto não está dentro do teu corpo
que deitas sobre mulheres fáceis
sem qualquer importância.
O amor que eu quero
é a presença constante
é o olho do patrão vigilante
que arde de seu cavalo.
Assim cavalguei cavalos de sombra
e os outros que me viram
correr sem freios
me consideraram louca.
De fato uma mulher que vive só
sem um escudo ornamentado
sem um ornato de crianças
não é nem mãe nem mulher
mas um nome híbrido que vem
estampado no rodapé da tua página.



La ragazzetta milanese, a miúda de Milão, é como Pasolini se referia a Merini. Numa das leituras que fiz sobre Caproni, descobri que também foi graças ao Pasolini que Caproni conseguiu se inserir melhor na cena literária romana/italiana: um grande poeta reconhece grandes poetas. E ele imediatamente reconheceu a força literária nos versos da Merini. Uma poética que experimentou duas décadas de silêncio enquanto ela esteva internada na clínica do abandono diagnosticada com distúrbio bipolar, para então voltar com La terra santa (Scheiwiller, 1984), considerada sua obra-prima. Clinica dell’abbandono (Einaudi, 2004) talvez faça referência a esses longos anos de solidão (tema que quero pesquisar no meu TCC, então talvez eu tenha coisas mais interessantes sobre isso ano que vem).


a poesia dela tem uma heterogeneidade que eu gosto muito: é arcaica e selvagem, é honesta, e tem ritmo, tudo envolto por certo mistério e certeza de sabe-se lá o que. Retomando Pasolini: “de fontes para a pequena Merini certamente não se pode falar: frente à explicação desta precocidade, desta monstruosa intuição duma influência literária perfeitamente congenial, nos declaramos desarmados”.


L’amore,
quello che io cerco
non è certo dentro il tuo corpo
che adagi su donne facili
senza alcuno spessore.
L’amore quello che voglio io
è la costante presenza
è l’occhio vigile del padrone
che arde del suo cavallo.
Così ho cavalcato cavalli d’ombra
e gli altri che mi hanno
visto correre senza briglie
mi hanno considerato pazza.
In effetti una donna che vive sola
senza uno scudo istoriato
senza una storia di bimbi
non è né madre né donna
ma un ibrido nome che viene
stampato in calce alla tua pagina.

(de Clinica dell'abbandono, Einaudi, 2004)

terça-feira, 7 de agosto de 2018

gravura

para desenhares esta mulher vais precisar:
01 todo tempo disponível no mundo
01 lápis infinito e de tons invisíveis
01 papel da mais pura leveza rígida
para que, quem sabe assim,
consigas um rabisco minúsculo.

para desenhares esta mulher vais precisar
fixar longamente seus cabelos em enredo
01 olhar atento às rugas em laço
01 delicadeza na ponta dos dedos - sem erros -
para que, quem sabe assim,
consigas um traço.

para desenhares esta mulher vais precisar
se envolver com toda a paixão do mundo
ter atenção tímida e vorazmente lúcida
se empenhar nos croquis, nos tratos desta figura
para que, quem sabe assim,
consigas um rascunho.

para desenhares esta mulher vais precisar
observar cada detalhe de suas fúrias
resgatar, nestas, toda a candura
e não se esquecer que há um tanto de doçura
escondida entre os poros intangíveis
da mulher, agora, seminua
quem sabe assim,
consigas um movimento.

para desenhares esta mulher vais precisar
reconhecer em seus olhos um pouco de ti
em sua barbaridade, algo de familiar
em sua bestialidade, algo de cômodo
em sua brutalidade, algo de inocente
em sua selvageria, algo de suave
para que assim, quem sabe,
consigas um delineamento.

para desenhares esta mulher vais precisar
te aventurar no desconhecido
mergulhar mares ferozes
nadar numa poça lamacenta
esfregar os olhos com areia
deixar a pele se queimar pelo sol
cortar os cabelos com navalha caseira
rasgar fundo tua calça preferida
arrancar da pele uma ranhura velha
escurecer ainda mais as olheiras
pular de braços abertos de uma cachoeira
para que assim, quem sabe,
consigas um esquema.

para desenhares esta mulher vais precisar
enfim, sobrepor teus borrões
a partir deles, criar estilo único
condizente com o perfil indômito
desta mulher, e quem sabe assim,
consigas um retrato infiel,
em preto e branco e todo bagunçado,
em papel já amarelado, a minuta
desta mulher, esta audácia,
esta bravura em aquarela.

segunda-feira, 6 de agosto de 2018

Memória, de Natalia Ginzburg

Natalia Ginzburg (Palermo, 1916– Roma, 1991)
Os homens vão e vêm
pelas ruas da cidade
Compram livros e jornais,
fazem coisas diversas.
Têm o rosto rosado,
os lábios vívidos e cheios.
Levantastes o lençol
para ver seu rosto,
te inclinastes para beijá-lo
com o gesto de costume.
Mas era a última vez.
Era o rosto de costume
só um pouco mais cansado.
E o vestido era aquele de sempre.
E os sapatos eram aqueles de sempre.
E as mãos eram aquelas que
partiam o pão e
serviam o vinho.
Ainda hoje, no tempo
que passa, levantas o lençol
para ver seu rosto
pela última vez.
Se caminhas pela rua
ninguém está ao teu lado
Se tens medo
ninguém te pega pela mão
E não é tua a rua,
não é tua a cidade.
Não é tua a cidade
iluminada. A cidade
iluminada é dos outros,
dos homens que vão
e vêm comprando
comida e jornal.
Podes mostrar um pouco
o rosto à janela quieta
ver o silêncio,
o jardim no escuro.
Então quando choravas
havia a sua voz serena.
Então quando rias
havia o seu riso submerso.
Mas o portão que à noite
se abria, ficará fechado
para sempre, e deserta
é a tua juventude.
Apagado o fogo,
vazia a casa.

- - -

Li Lessico Famigliare (Einaudi, 1963) pela primeira vez em 2016 (desde então apenas reli alguns trechos, não sou a leitora voraz que essa frase faz crer) e no mesmo ano apresentei uma comunicação oral sobre essa obra. Enquanto preparava tudo o que eu queria falar, li esse poema diversas vezes, e em todas elas chorei. É difícil explicar como algo que não fez parte da tua vida possa te tocar dessa maneira, e talvez aí esteja a potência da escrita de Natalia: da omissão, de colocar o próprio eu cada vez mais escondido (aqui, como o interlocutor do poema, que implica um eu ainda mais remoto), de tentar sempre se distanciar para “evitar os sentimentalismos que permeiam a produção literária feminina” — de tudo isso, resta um olhar lúcido que delineia as situações claramente. E vê claramente a solidão, a desolação causada pelas truculências da guerra, a juventude que termina no passar de alguns meses conturbados e solitários.

Preso e morto em cárcere durante o regime fascista, Leone foi o primeiro marido de Natalia, era de família judaica russa e, como ela, trabalhou para a editora Einaudi, onde também fez bons amigos da cena literária italiana. Em Léxico Familiar, sua morte aparece ambientada simplesmente em “un gelido febbraio” — e fim de parágrafo. Nestes versos de “Memoria”, a solidão e os dias gélidos se dão em uma cidade que não é sua, em traços de homens que não são Leone, que quase nem são mais humanos, que seguem com a vida quando não há mais vida para seguir.

Natalia e o marido, Leone Ginzburg
Natalia e o marido, Leone Ginzburg

Memoria

Gli uomini vanno e vengono
per le strade della citta’
Comprano libri e giornali,
muovono a imprese diverse.
Hanno roseo il viso,
le labbra vivide e piene.
Sollevasti il lenzuolo
per guardare il suo viso,
ti chinasti a baciarlo
con un gesto consueto.
Ma era l’ultima volta.
Era il viso consueto,
solo un poco piu’ stanco.
E il vestito era quello di sempre.
E le scarpe erano quelle di sempre.
E le mani erano quelle che
spezzavano il pane e
versavano il vino.
Oggi ancora nel tempo
che passa sollevi il lenzuolo
a guardare il suo viso
per l’ultima volta.
Se cammini per strada
nessuno ti è accanto
Se hai paura
nessuno ti prende per mano
E non è tua la strada,
non è tua la città.
Non è tua la città
illuminata. La città
illuminata è degli altri,
degli uomini che vanno
e vengono comprando
cibi e giornali.
Puoi affacciarti un poco
alla quieta finestra
a guardare il silenzio,
il giardino nel buio.
Allora quando piangevi
c’era la sua voce serena.
Allora quando ridevi
c’era il suo riso sommesso.
Ma il cancello che a sera
s’apriva, restera’ chiuso
per sempre, e deserta
è la tua giovinezza.
Spento il fuoco,
vuota la casa.




- - -

Em Roma, Natalia conheceu e fez amizade com grandes nomes da literatura italiana do século passado, como Pier Paolo Pasolini, Cesare Pavese, Giulio Einaudi etc, e até mesmo Giorgio Caproni (autor que estudo no PIBIC, funfact: foi ela quem pediu que ele traduzisse um dos livros de La recherche de Proust para o italiano — Alla ricerca del tempo perduto XIV: il tempo ritrovato, foi publicada pela própria Einaudi).

Por fim, desde que a Cosac Naify fechou, é a Companhia das Letras que tem publicado novas edições do romance da Ginzburg. Aqui tem algumas informações superficiais a respeito disso, nos comentários tem conteúdo mais interessante.

sábado, 4 de agosto de 2018

O jardim de "A Indecência", de Elvira Seminara

“Nunca se viu, em minha casa, um outono assim desmedido. E não só porque não era outono ainda, mas setembro, dia 15.
Parecia que o meu jardim, enquanto nós não estávamos, tivesse feito uma festa, dançado até o amanhecer e vomitado (sentia até, mas talvez fosse uma impressão, cheiro de coisas vencidas, vinho ácido, vermes esmagados sob os pés).
Dei a volta na poça d’água em que flutuavam insetos e longos filamentos. À minha frente, a grama do pergolado tinha alcançado com um salto a escada e se unia às pétalas da solandra, as pequenas unhas afundadas no cálice.
O amarelo carnudo das flores e o verde remexido das folhas fervilhavam no cruzamento, e ambas, flores e folhas, sufocavam em um abraço que se extinguia exausto sobre o muro.
Me deixei cair no banco. Uma folha se soltou do ramo e sibilou aos meus pés. As línguas rosas da bouganville do canteiro se alongaram ansiosas sobre os chumaços de glicínia; e folhas, folhas por todo lado, lábios de folhas inchadas e esgotadas, num aperto sem fim, uma orgia de folhas matizadas e lúcidas de todas as espécies que se enfiavam trêmulas nos caminhos disponíveis — uma fenda, um vaso quebrado, uma fissura entre os tijolos. E folhas com dentes que sugavam o ferro das cadeiras, se contraíam e se dilatavam. Ossos de folhas no chão, que gemiam sob os passos. Folhas tenras e exauridas, reduzidas a fibras, nervos, poeira. Folhas molhadas e folhas hirsutas, que ganiam ao vento e umedeciam as bordas, e depois os tentáculos dos ramos recém-nascidos que se agarravam a arbustos mais fortes. Até um pedaço de tronco destinado à lareira tinha fincado raízes e se transformado em árvore. Um breve, disforme, tronquinho de felicidade.
Não consegui tocá-lo.
Se esfregavam no muro até a trepadeira do vizinho, que, puladas as cercas, se lançavam sobre o agave, num emaranhado que tinha algo de terrível. Maravilhoso, também.
O interessante é que não tínhamos mudado de casa.
Quando aconteceu tudo isto?
O pôr-do-sol terminou. Senti o olhar rastejante da grama que serpenteava sob a balaustrada. Por debaixo da saia florida, uma trepadeira se agarrava a mim.

(L’Indecenza, Mondadori, 2008, pp. 7–8)

quarta-feira, 1 de agosto de 2018

um parêntese na guerra

(Era um grito no cinza
consumado no ar
a cor das casas
na praça de pedra
da tua roupa, devota
ao caminhar.

De um ramalhete
de cravos, um rúbeo
sanguinolento se verteu
a meu rosto, dado
com tristeza ao pecado.

Era um grito no vento
doloroso o prateado
tão velho das águas
de teu rio.

Nas águas
a tua efígie madura
era fogo de brasa,
era amor veraz
minha rubra paúra).


Giorgio Caproni (1912–1991)


(Era un grido nel grigio
consumato nell’etra
delle case il colore
sulla piazza di pietra
del tuo abito, ligio
all’andazzo.

Da un mazzo
di garofani, un rosso
sanguinoso era mosso
al mio viso, donato
con tristezza al peccato.

Era un grido nel vento
doloroso l’argento
così vecchio dell’acque
del tuo fiume.

Nell’acque
la tua effigie matura
era fuoco di brace,
era amore verace
la mia rossa paura).

De Cronistoria (Vallechi, 1943), escrito durante a Resistência.

Das impossibilidades: rima e música impossíveis — e música é literalmente o que atraiu o Caproni à poesia, mas ok (a ver: grido nel grigio x grito no cinza, cruzes!); também não tem como configurar os movimentos visuais do poema (as estrofes pares quase formam um “encadeamento métrico” com as ímpares anteriores (mas na tradução eu nem vi métrica, rs), é uma dança com a música do poema e eu tenho dois pés esquerdos).

O que eu gosto: a figura feminina como símbolo de vida, ou vitalidade (tema recorrente na poética caproniana — já em Come un’allegoria), e que vem associada à natureza (os cravos, o rio, o fogo — que também têm esse impulso, esse movimento (como as bicicletas e os trens em outras obras)); a pintura: a imagem dessa chama, que é formada pelo uso das cores, e como o vermelho de sangue, aqui, é também uma fuga, é alegoria para vida e vigor, e não sangue de morte (a guerra é apenas cinza, é a pólvora, é o que atrapalha a visão da vida).

na minha cidade há uma rua em que os carros param e parecem à beira do abismo esperam o semáforo e dali pra frente é só pra baixo rumo ao ho...