segunda-feira, 6 de agosto de 2018

Memória, de Natalia Ginzburg

Natalia Ginzburg (Palermo, 1916– Roma, 1991)
Os homens vão e vêm
pelas ruas da cidade
Compram livros e jornais,
fazem coisas diversas.
Têm o rosto rosado,
os lábios vívidos e cheios.
Levantastes o lençol
para ver seu rosto,
te inclinastes para beijá-lo
com o gesto de costume.
Mas era a última vez.
Era o rosto de costume
só um pouco mais cansado.
E o vestido era aquele de sempre.
E os sapatos eram aqueles de sempre.
E as mãos eram aquelas que
partiam o pão e
serviam o vinho.
Ainda hoje, no tempo
que passa, levantas o lençol
para ver seu rosto
pela última vez.
Se caminhas pela rua
ninguém está ao teu lado
Se tens medo
ninguém te pega pela mão
E não é tua a rua,
não é tua a cidade.
Não é tua a cidade
iluminada. A cidade
iluminada é dos outros,
dos homens que vão
e vêm comprando
comida e jornal.
Podes mostrar um pouco
o rosto à janela quieta
ver o silêncio,
o jardim no escuro.
Então quando choravas
havia a sua voz serena.
Então quando rias
havia o seu riso submerso.
Mas o portão que à noite
se abria, ficará fechado
para sempre, e deserta
é a tua juventude.
Apagado o fogo,
vazia a casa.

- - -

Li Lessico Famigliare (Einaudi, 1963) pela primeira vez em 2016 (desde então apenas reli alguns trechos, não sou a leitora voraz que essa frase faz crer) e no mesmo ano apresentei uma comunicação oral sobre essa obra. Enquanto preparava tudo o que eu queria falar, li esse poema diversas vezes, e em todas elas chorei. É difícil explicar como algo que não fez parte da tua vida possa te tocar dessa maneira, e talvez aí esteja a potência da escrita de Natalia: da omissão, de colocar o próprio eu cada vez mais escondido (aqui, como o interlocutor do poema, que implica um eu ainda mais remoto), de tentar sempre se distanciar para “evitar os sentimentalismos que permeiam a produção literária feminina” — de tudo isso, resta um olhar lúcido que delineia as situações claramente. E vê claramente a solidão, a desolação causada pelas truculências da guerra, a juventude que termina no passar de alguns meses conturbados e solitários.

Preso e morto em cárcere durante o regime fascista, Leone foi o primeiro marido de Natalia, era de família judaica russa e, como ela, trabalhou para a editora Einaudi, onde também fez bons amigos da cena literária italiana. Em Léxico Familiar, sua morte aparece ambientada simplesmente em “un gelido febbraio” — e fim de parágrafo. Nestes versos de “Memoria”, a solidão e os dias gélidos se dão em uma cidade que não é sua, em traços de homens que não são Leone, que quase nem são mais humanos, que seguem com a vida quando não há mais vida para seguir.

Natalia e o marido, Leone Ginzburg
Natalia e o marido, Leone Ginzburg

Memoria

Gli uomini vanno e vengono
per le strade della citta’
Comprano libri e giornali,
muovono a imprese diverse.
Hanno roseo il viso,
le labbra vivide e piene.
Sollevasti il lenzuolo
per guardare il suo viso,
ti chinasti a baciarlo
con un gesto consueto.
Ma era l’ultima volta.
Era il viso consueto,
solo un poco piu’ stanco.
E il vestito era quello di sempre.
E le scarpe erano quelle di sempre.
E le mani erano quelle che
spezzavano il pane e
versavano il vino.
Oggi ancora nel tempo
che passa sollevi il lenzuolo
a guardare il suo viso
per l’ultima volta.
Se cammini per strada
nessuno ti è accanto
Se hai paura
nessuno ti prende per mano
E non è tua la strada,
non è tua la città.
Non è tua la città
illuminata. La città
illuminata è degli altri,
degli uomini che vanno
e vengono comprando
cibi e giornali.
Puoi affacciarti un poco
alla quieta finestra
a guardare il silenzio,
il giardino nel buio.
Allora quando piangevi
c’era la sua voce serena.
Allora quando ridevi
c’era il suo riso sommesso.
Ma il cancello che a sera
s’apriva, restera’ chiuso
per sempre, e deserta
è la tua giovinezza.
Spento il fuoco,
vuota la casa.




- - -

Em Roma, Natalia conheceu e fez amizade com grandes nomes da literatura italiana do século passado, como Pier Paolo Pasolini, Cesare Pavese, Giulio Einaudi etc, e até mesmo Giorgio Caproni (autor que estudo no PIBIC, funfact: foi ela quem pediu que ele traduzisse um dos livros de La recherche de Proust para o italiano — Alla ricerca del tempo perduto XIV: il tempo ritrovato, foi publicada pela própria Einaudi).

Por fim, desde que a Cosac Naify fechou, é a Companhia das Letras que tem publicado novas edições do romance da Ginzburg. Aqui tem algumas informações superficiais a respeito disso, nos comentários tem conteúdo mais interessante.

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