sábado, 4 de agosto de 2018

O jardim de "A Indecência", de Elvira Seminara

“Nunca se viu, em minha casa, um outono assim desmedido. E não só porque não era outono ainda, mas setembro, dia 15.
Parecia que o meu jardim, enquanto nós não estávamos, tivesse feito uma festa, dançado até o amanhecer e vomitado (sentia até, mas talvez fosse uma impressão, cheiro de coisas vencidas, vinho ácido, vermes esmagados sob os pés).
Dei a volta na poça d’água em que flutuavam insetos e longos filamentos. À minha frente, a grama do pergolado tinha alcançado com um salto a escada e se unia às pétalas da solandra, as pequenas unhas afundadas no cálice.
O amarelo carnudo das flores e o verde remexido das folhas fervilhavam no cruzamento, e ambas, flores e folhas, sufocavam em um abraço que se extinguia exausto sobre o muro.
Me deixei cair no banco. Uma folha se soltou do ramo e sibilou aos meus pés. As línguas rosas da bouganville do canteiro se alongaram ansiosas sobre os chumaços de glicínia; e folhas, folhas por todo lado, lábios de folhas inchadas e esgotadas, num aperto sem fim, uma orgia de folhas matizadas e lúcidas de todas as espécies que se enfiavam trêmulas nos caminhos disponíveis — uma fenda, um vaso quebrado, uma fissura entre os tijolos. E folhas com dentes que sugavam o ferro das cadeiras, se contraíam e se dilatavam. Ossos de folhas no chão, que gemiam sob os passos. Folhas tenras e exauridas, reduzidas a fibras, nervos, poeira. Folhas molhadas e folhas hirsutas, que ganiam ao vento e umedeciam as bordas, e depois os tentáculos dos ramos recém-nascidos que se agarravam a arbustos mais fortes. Até um pedaço de tronco destinado à lareira tinha fincado raízes e se transformado em árvore. Um breve, disforme, tronquinho de felicidade.
Não consegui tocá-lo.
Se esfregavam no muro até a trepadeira do vizinho, que, puladas as cercas, se lançavam sobre o agave, num emaranhado que tinha algo de terrível. Maravilhoso, também.
O interessante é que não tínhamos mudado de casa.
Quando aconteceu tudo isto?
O pôr-do-sol terminou. Senti o olhar rastejante da grama que serpenteava sob a balaustrada. Por debaixo da saia florida, uma trepadeira se agarrava a mim.

(L’Indecenza, Mondadori, 2008, pp. 7–8)

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