sexta-feira, 29 de maio de 2020

quem lê tanta notícia

a felicidade é um esquecimento
—Oriana Fallaci
todo mundo sabe
que acabou
o brasil
e sentados nas ruínas
nós não mais jovens
com nossos cabelos coloridos
temos os olhos embotados
de suor e lágrimas cinzas
de tanto lavarem o ar
porque lembramos
que a bandeira que deveria ser vermelha
de sangue morte e luta
não delimita mais nada
e as mulheres, como eu,
têm o sangue escorrendo pela perna
esquerda ou direita
porque outro dia vira memória
e nada muda

variamos de tom
enquanto assistimos a mais um pôr do sol
que se põe com nossa angústia
enquanto nos dá um segundo de alegria
porque de esquecimento
nas ruínas dessa nunca um dia nação
em que sempre falamos português
e nos identificamos com italianos
e alemães, polacos, ou nada
ou a sombra das vozes caladas
e nós com nossas vogais nasais
e nosso cheiro de terra pisada
em meio a toda essa ruína
presenciamos o que belchior não esperava
(mas anunciava) o que apesar de chico
foi de novo mais outro dia:
o novo que não chega
nada foi divino, nada será maravilhoso
e não há mais qualquer compositor baiano
a dizer algo que não seja o eco
das ruas que não silenciam por seus mortos:
vivemos o mesmo dia de novo

e de novo e de novo

há setenta dias que não saímos de casa
e nada começou
há mais de vinte mil mortos
(número que se desatualiza na construção dessa linha)
e nada começou
há mais de quinhentos anos de sangue
e de américa do sul
e nada começou
mas agora começamos
a nos identificar
apenas como latinoamericanos
buscamos nos vizinhos uma xícara
de raiva da polícia, de ódio do estado
mas também de leve conforto em alguma figura
séria e responsável, que vela seus mortos
e fala com seus vivos
aqui, vergonha internacional do que nos tornamos
do que nos obrigaram a nos tornar:
falam os arautos da morte
e calam o pouco de vida que ainda se vê
agora, derrubamos o que um dia quis-se crer
fronteira entre hermanos
porque o brasil
que nunca nem começou
acabou
como amanhã
de novo
Pois deve ser uma modalidade muito especial do cólera 
- disse - porque cada morto tem seu tiro de misericórdia na nuca.
— Gabriel García Márquez

inda pago pra ver o jardim florescer qual você não queria...
Chico 

ps depois de protestos antifa no dia trinta e um de maio de dois mil e vinte
ps com as energias da esperança retomadas, como não queriam: 
o brasil pode até ter acabado
se arruinado no poço da própria 
desgraça brasileira
cavada por gente brasileira
em terras e tempos brasileiros
há mais de quinhentos anos de brasis
mas a brasilidade
está aí
como há tanto
sobrevive-se se é
brasileiro
eu era alegre como um rio...
Belchior 

quarta-feira, 20 de maio de 2020

já desandei da vida

- I love you...
- It'll pass.

Fleabag
nesta quarentena tive tempo
para reconhecer amigas
e reconhecer a mim
conversando descobri
que Paula é veterinária
e tem planos de voltar para a Europa
passa o dia cercada por cachorros
tomando cerveja na piscina, como eu
queria, e à noite é cama e gata
que Anna faz sapatos
os vende quando pode
e tem planos de abrir sua fábrica
passa o dia em casa, como eu,
cercada de paredes e memórias
que se movimentam, enclausuram
que Marina reformou a sala e a cozinha
durante a quarentena e passa o dia em função
(a mulher é a única instituição funcionando)
e tem planos com a família
que Vitor quer um novo hobbie
quer ser marceneiro além de confeiteiro
e que tem planos em andamento
que pode andare via a qualquer momento
que Maria e Luísa seguem a vida
entre surto e exercícios físicos
às vezes dão uma volta com seus cachorros
e se entristecem com as pessoas despreocupadas
e que como Luiza, Priscila e Fernanda
nem sempre sonham com engenharia
e eu me vejo nesse quadro parada no tempo
que dizem tanto tenho, continuo sendo
eternamente a mesma
nunca escrevi
um poema
um romance
um conto
nem me lembro se já escrevi
cartas, apesar de saber que as li
o movimento dos dias é lento e violento
sempre o mesmo
um mar que não se cansa de rebentar
e sinto os dias em reverso
se repetem
mas tudo tudo passa
e eu fico
sem saber sabendo
We believe in a universe in which time exists 
and therefore everything will disintegrate and be gone 
and the suffering of that is unbearable.
[...] This is hopeless. This is hopeless.
- The Midnight Gospel 

domingo, 17 de maio de 2020

a mulher também vem do barro

os dedos longos e delicados delineiam
com a ponta do pincel a pintura
que começa como uma dança
e não se sabe ao certo quem guia
mas teus olhos de menina
acertam o tom do barro
e desenhas e pintas sem medo
como mulher primeira
feito fosses de argila
: moldável
e te deleitas em aquarela
: respingas
e numa moldura simples
fazes ver moças e folhas
cabelos em cachos e olhos
em transe, em trânsito
se veem ao te ver espelhada
és uma e cem mil
a cada pincelada
um pouco de tuas mãos
um pedaço de ti que pinta
e respinga
o mundo deságuas em tons
sutis como tua voz, suaves
como teu café com leite
pintado
em pó? de onde viestes?
tudo que se sabe é que pintastes
e quem és? fazes do tato o teu traço
fazes de uma mulher algo que veio do barro

sábado, 16 de maio de 2020

(o que eu entendo)?

de repente, me levanto e te vejo calmamente:

estás sentado na areia, de sunga azul (que sempre foi a tua cor)
tens uns sete ou oito anos e toda energia de ti irradia
eu sentada num canto invisível da praia, na areia
à sombra (sem água fresca), te observo atentamente:
sentado na areia, de sunga azul e mãos muito ativas
explicas, a quem quiser ouvir, como se faz um castelo:
primeiro, é preciso estar do lado de dentro
e estabelecer os limites da tua fortaleza
então desenhas com a mão um círculo
ao teu redor, e começas a cavar e cavar e cavar
coletas areia e deixas a um canto
e passas a levantar muros para a tua muralha
para as paredes, atrás das quais estarás protegido,
para a estrutura sólida que ainda não sabes exatamente:
o que é? sabes apenas o movimento contínuo das mãos,
mas quantos quartos terá este teu palácio
primeiro imaginado, desenhado e então levantado?
pouco te importam questões de design agora
és um engenheiro, levantas paredes e pontes
um arquiteto, estabeleces arcos e terraços
um guerreiro, estás pronto para as batalhas,
que certo virão, e estarás a posto num terraço
de onde poderás fazer mirar teus canhões
a quem quer que ameace a boa estrutura
de teu castelo, firme na areia da praia,
de onde poderás vigiar o horizonte,
observar a chegada de navios piratas
e comerciantes, mercenários e prostitutas;

o mar continua atrás de ti, mas não saberia descrevê-lo
pois meus olhos estão cegados, concentrados em toda tua energia:
contaminas a tonalidade dessa memória criada
e sei disso porque tua sunga é mais azul que o mar,
tuas mãos mais agitadas que as ondas a rebentar,
e tua voz mais altiva que o estrondo da tempestade anunciada

assisto atentamente o homem que te tornas e és:
e te compreendo um forte feito de pedras imemoriais
onde batalhas foram vividas e esquecidas;
e de repente te vejo: um velho magro que fuma à beira-mar
e não fala de piratas e herois e crianças, silencia
pois assiste mais um navio a naufragar
e ao meu redor, desde dentro, és tudo: água salgada

quinta-feira, 14 de maio de 2020

e l' alba è un pugno in faccia verso cui tendo le braccia
- Francesco Guccini
Amanhece, outra vez,
muito depois das pálpebras cansadas
que não encontraram ainda um dia
sequer de descanso e sensatez:
outra noite despedaçada
cortada em pequenas partes
blocos de tempo.
Se eu fosse criança, poderia ainda
brincar de lego e casinha
pegaria peça por peça e formaria
um todo talvez incoerente
mas algo poderia ainda fazer:
usaria minhas mãos
e deixaria meus olhos voltarem-se
para realidades outras, não circundantes.
Se eu fosse criança, uma outra,
brincaria despreocupada
cada bloco um objeto único, fascinante,
que se reformularia na ponta de meus dedos
conforme a vontade de meus pequenos desejos.
Mas hoje, quase aniversário da minha última solidão,
não sei diferenciar o tempo vivido, apenas o tempo sonhado:
sei que um dia é diverso do anterior e do seguinte
pela força dos meus medos
que me acompanham noite adentro
e me lembram que há sempre algo novo a ser temido
há sempre alguma morte, alguma violência:
há sempre ausência
e o sol que não esbraveja.

domingo, 10 de maio de 2020


é tempo de caqui
que é uma palavra tão linda
e que a cada mordida
brinca com a saliva
e as papilas gustativas
e nem dança na língua
que se mexe miudinha
é tempo de caqui
e eu lembro do tempo em que
eu era menina e insistia
para minha mãe: eu gosto
mais é desse aqui!
e ela ria e repetia
que sabia
e em casa tinha
sempre muito caqui
do tipo que preferia
o meu irmão

sábado, 2 de maio de 2020

i.
uma mulher caminha a pés descalços
o vestido branco se arrastando terra
a fora como fera sem fome
caminha, quebra com a sola dos pés
grãos e folhas secas a cada passo
mas quase sem fazer barulho
e não o faz por delicadeza
pela calma com que percorre
os campos em busca de nada;
correndo círculos ao seu redor
um leão que ruge como quem surge
pela segunda vez na mesma pintura
como um espelho que não reflete
a imagem mas sim uma aura, uma ruptura
corre ao seu redor e desenha na terra
o caminho circular do tempo transcorrido
pelos passos da mulher de vestido
branco se arrastando pela terra;
responde a seu rugido com um grito
um canto que vem surgindo
e ecoando pelos quatro cantos
dessa mesma terra, desolada
em seus encantos

ii.
uma mulher que é um mago move
suas mãos lentamente sobre
a mesa e suas ferramentas
tem diante de si tudo o que precisa
os quatro elementos e suas mãos
as quatro estações e seus olhos
os quatro períodos do dia e a precisão
de quem reconhece um padrão
essa mesma mulher que há pouco corria
cobriu-se de um manto branco e vermelho
e precisa agora se concentrar na função
na magia que opera em suas mãos
macias mas ferozes: empunha uma espada
e aponta para o alto; segura uma taça voltada ao chão
diante de seus olhos um pentagrama dourado
calmamente forjado em fogo cálido
os pés ainda cheios de terra deslizam
sobre madeira e galhos pisados
seu ventre rodeado de uma serpente
dourada em chamas que se agarra
à própria cauda com os dentes
tudo converge para este momento presente
: o futuro; o tempo-espaço se revelando
até aqui, todo o universo
em desencanto

na minha cidade há uma rua em que os carros param e parecem à beira do abismo esperam o semáforo e dali pra frente é só pra baixo rumo ao ho...