terça-feira, 28 de abril de 2020

o nosso amor não teve, querida,
as coisas boas da vida
o corpo encaracolado no canto
do sofá, suave feito um bicho
coberto de musgo de há tanto
que não se move, não se vive
o corpo como uma concha
esvaziada ainda (ainda)
às vezes uma menina brinca
encosta-a ao pé do ouvido
e ri baixinho com o que crê
ser eco do som do mar
e é falso
concha vazia, resquício
de alguma vida (queria)
enrolado em si mesmo
ensimesmando-se em si
voltas sem fim
sem fim mesmo
uma menina percorre
a curva com a ponta do dedo
e em algum momento
percebe que não tem
saída: é uma concha vazia
se vai da entrada
para a parte de dentro
encontra nada
direção contrária:
poderia?
ainda?

sexta-feira, 17 de abril de 2020

me agarro a uma sensação:
o cheiro que deixa o salsão
na minha mão, dentro
das digitais dos dedos
me identifico?
algo a identificar:
esta sensação
(que permeia as células
deste papel vazio)
esta sensação
de quem cozinha, outra vez,
o mesmo macarrão
ao molho sem preocupação
das primeiras vezes extrai
ainda alguma emoção
?
agora talvez ausente
inerte em contemplação
mas algo ainda se sente
o cheiro, na minha mão,
lento e familiar:
memória do presente
que vivo quase consciente
até que se torne
não -- você aí do outro
lado, consegue sentir?
roça o dedo na superfície
e apaga as minhas digitais?
e ainda extrai
a sensação
da folha
cortada
fresca
água
& sal
você está sentindo?
algo que emerge
sozinho

na minha cidade há uma rua em que os carros param e parecem à beira do abismo esperam o semáforo e dali pra frente é só pra baixo rumo ao ho...