sábado, 30 de outubro de 2021

in memoriam

de olhos bem fechados percorro
todos os dias mas principalmente
cada uma das noites que persistem
passo a passo piso em pêssegos
úmidos e pútridos esquecidos
ainda desenham no chão o caminho
em que corremos numa tarde quente
de domingo entre os bosques com o suco
desenho com o pé um novo sulco
onde caiba meu corpo miúdo
para onde possa voltar mais tarde
e ali úmida e quente me enterrar
mas todos os dias todas as noites
passeio pelos ecos desses dias
fingindo ignorar as brisas
que arrepiam o pelo felino
e dão espaço a certo vazio
finjo ignorar porque não posso
apenas ignorar, és-me impossível
um passo num abismo incontornável
decido a cada alguns dias correr
do abismo e finjo outra vez
finjo não ver os poços em que caio
vez após vez de olhos bem abertos
as portas da percepção escancaradas
cada poro da minha pele encharcada
está inundado de ecos ecos ecos e com
o som que não me deixa surda eu ouço
os passos que correm bem atrás de mim
vêm de longe e vêm cada vez mais perto
de mim. é inescapável eu penso em voz alta
e percebo o som da minha voz ecoando um grito
e grito no poço em que ainda caio e não posso
fingir que não fui eu que cavei esse sulco
na terra árida para que eu coubesse inteira
todo o volume do meu corpo maciço
a voz vem me alcançando mais rápida
do que a gravidade, e é grave o som
que meu corpo faz ao encontrar o fundo


vez após vez, noite após noite
em silêncio e esquecimento

sexta-feira, 29 de outubro de 2021

lembra?
daquele dia em
que comemos vidro
porque eu estilhacei
o pote de doce de leite
argentino no chão limpo
da cozinha fria no verão
tu lembra?
pergunto porque eu
estava me lembrando
do dia em que lavamos
a geladeira pós mudança
e cantávamos juntos leves
uma música da banda que
todo mundo fingia não gostar
mais porque pegava mal gostar
de uma banda com nome
argentino e homem branco
falando de mulher branca
e ninguém queria saber de
argentina brancos e brancas
a vida assim tão binária
mas juntos a gente cantava
despreocupado com o calor
que já começava a dar verão
tu te lembra?
esses são dias diferentes e
possivelmente são dias
diferentes de anos que
são também diferentes
mas é a mesma cozinha
ou a cozinha como entidade
também tem direito a entrar
duas vezes no rio sempre
pela primeira vez por ser
também ela cozinha diferente
tu te lembras?
da segunda vez provavelmente
já tinha na cozinha diferente
o filtro de barro que hoje
a gente chama de carluxo e ri
do filho do presidente
enquanto nossas bocas ainda
têm dentes pra se lhes fincar
os dias quentes e cada vez
cada vez mais cheios de dentes
tu lê no teu quarto o poeta
que pede pra que a gente
se lembre, quer dizer, que a gente
não se esqueça? como é?
enfim, um apelo à memória
pra não perder de vista o horror
mas hoje e ontem e acho que amanhã
também eu só queria ter em mente
atrás dos olhos úmidos embaçados
tu e todos os teus dentes de vidro

quarta-feira, 27 de outubro de 2021

veio em feras um poema em heras
que entre as severas beiras
apagou-se-me em eras

quinta-feira, 14 de outubro de 2021

 [aqui, parece, tive um momento de angústia, de escrita. que caiu no silêncio, no dia cinco de outubro. e vários outros sem registro]

ontem conheci
a mulher de que me falou
angélica
num poema de um tempo atrás
a mulher que caiu do cacho de uvas
e prefere mesmo uvas a bananas
essa é a sua preferência e eu nunca
entendi muito bem o que isso quer dizer
concretamente na realidade da mulher
que caiu dos cachos até que ela me
explicou: pra comer as uvas
cada baguinho de uva doce
ela não precisa dos dentes
que não tem

segunda-feira, 11 de outubro de 2021

por algum motivo hoje
me esqueço do teu nome
procuro nos meios digitais
com um ctrl f trêmulo
palavras-chave
que nos rastreiem
que encontre
como sempre me acontece
a tecnologia me abandona
a tela azul os teus olhos
eram castanhos se não engano
me lembro por trás das telas
das lentes os olhos míopes
aguçados para me ver acordar
tu não dormias, eu me lembro
mas quando te procuro na língua
bem na ponta da língua
tu me escapas

na minha cidade há uma rua em que os carros param e parecem à beira do abismo esperam o semáforo e dali pra frente é só pra baixo rumo ao ho...