sábado, 30 de outubro de 2021

in memoriam

de olhos bem fechados percorro
todos os dias mas principalmente
cada uma das noites que persistem
passo a passo piso em pêssegos
úmidos e pútridos esquecidos
ainda desenham no chão o caminho
em que corremos numa tarde quente
de domingo entre os bosques com o suco
desenho com o pé um novo sulco
onde caiba meu corpo miúdo
para onde possa voltar mais tarde
e ali úmida e quente me enterrar
mas todos os dias todas as noites
passeio pelos ecos desses dias
fingindo ignorar as brisas
que arrepiam o pelo felino
e dão espaço a certo vazio
finjo ignorar porque não posso
apenas ignorar, és-me impossível
um passo num abismo incontornável
decido a cada alguns dias correr
do abismo e finjo outra vez
finjo não ver os poços em que caio
vez após vez de olhos bem abertos
as portas da percepção escancaradas
cada poro da minha pele encharcada
está inundado de ecos ecos ecos e com
o som que não me deixa surda eu ouço
os passos que correm bem atrás de mim
vêm de longe e vêm cada vez mais perto
de mim. é inescapável eu penso em voz alta
e percebo o som da minha voz ecoando um grito
e grito no poço em que ainda caio e não posso
fingir que não fui eu que cavei esse sulco
na terra árida para que eu coubesse inteira
todo o volume do meu corpo maciço
a voz vem me alcançando mais rápida
do que a gravidade, e é grave o som
que meu corpo faz ao encontrar o fundo


vez após vez, noite após noite
em silêncio e esquecimento

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