quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

que são estas cinco pernas
minhas?
antes ainda
que é esta minha
consciência?
percebo-me histórica
mas dato-me
deste instante-agora
sou fruto
talvez fruta
se fosse brincar
do tempo que faz ver
na escuridão a luz
antes e depois
lúcidos
            obscuros
se convergem em mim
na minha cabeça
gelatinosa
e translúcida
às vezes luminosa?
estou me descobrindo ainda
ainda
agora lembro-me bem
eram oito
as pernas
todas minhas
delgadas
pernas
insisto em chamá-las pernas
que é o que não
deixam de ser
alongadas delineiam
o movimento-dança
me propulsionam
sempre na direção da cabeça
mas nem sempre
para cima
rodopio
espiralo
daqui poderia
sim poderia
criar um maremoto
fazer chacoalhar
o éter marinho
em que me fui concebendo
silencio
a minha voz
me movo-dança lenta
me quero criatura suave
fruto•a do meu tempo
no meu tempo
no ritmo
no pulso
de minhas pernas
mutiladas

sexta-feira, 3 de dezembro de 2021

شروق

o árabe me faz pensar no futuro
(eu quero dizer arábico, fazendo
ver que eu fui colonizada)
uma língua tão das profundezas
da civilização pré-ocidental
- se penso na língua que falo
desde pequena, e como falava! -
profunda, e me joga pra frente
eu anoto como quem entende
que a diferença entre os s d z
é uma questão de gravidade
eu escrevo "fica mais grave"
e penso no que vem pela frente
tento mudar o foco
e faço uma brincadeira
fixo o olhar e encontro o som
fica mais fechado eu escrevo
faço como quem fala
árabe há vários anos
milênios
o em vez de e
mas e em vez de a
porque tudo vai se fechando
ficando preso na garganta
o choro
não eu quis dizer
o som
há uma palavra que me faz
pensar em choro mas a imagem
é tão amarela tão quente
como orvalho
ou a lágrima
da manhã
shu-rwq
eu escrevo como quem sabe
transcrever alfabetos
o choro é que dá
o tom da manhã
do sol que nasce
em shu-rwq
como um rebento
ou como um arrebentar-se
no fundo da fala

na minha cidade há uma rua em que os carros param e parecem à beira do abismo esperam o semáforo e dali pra frente é só pra baixo rumo ao ho...