sexta-feira, 4 de setembro de 2020

i.
o espelho estilhaçado no chão
e não importa quantas perguntas
eu faça insistentemente de novo
e de novo incoerentemente ecoo
o espaço vazio e cinzento entre
um breve reflexo e outro molhados
por lágrimas inconscientemente
inconsoláveis que não formam sequer
um mosaico um painel de arte
se me esforço e penso eu minto
e chamo a desgraça de colagem
arte em sobreposição absurda
em suas linguagens em meus
silêncios perenes ecoando o meu
grito: desespero incompreensível
ao ver em meus reflexos tantos
pedaços sem compreender a imagem
final porque a cada instante que tento
compreender o todo o todo se desforma
a cada instante de novo e de novo
e a vibração da imagem refletida não
reúne ou dá a ilusão de completude
entre os estilhaços: sou eu aquilo que
me vejo e aquilo que me olha de volta
e tudo aquilo que não vejo nem me olha
sou eu o tudo incompleto opaco estilhaço
em construção e o desespero de não saber
sou eu

ii.
tento outra vez uma aproximação
uma outra angulação que me sirva
como ponto de vista de todo novo
então tiro os calçados e a meia e
me atiro de pés inteiros no espelho
já despedaçado: nenhum estrago
e com o sangue que escorre
desenhando como que magma
passeando por terra a primeira vez
percebo enfim as fissuras que separam
c a d a  e s t i l h a ç o  num desenho
mágico selvagem como um rio
é impossível dizer que rumo o sangue
escolhe seguir mas escolho assistir
ou como muito me ocorre deixo a escolha
me acontecer enquanto inerte respiro
um suspiro de cada vez e o sangue
já é muito e se alastra e parece dar corpo
e cor à opacidade que impede o todo
e aí sou alcançada por uma iluminação
: não sei como o espelho se estilhaçou
quem sabe foi estilhaçado ou venha assim
de fábrica quem sabe o espelho só é espelho
quando enfim se vê: estilhaçado
sem origem razão ou finalidade é feito
do que não é possível consertar e
enquanto o sangue segue fazendo
desenhos percebo-me impossível dizer
atribuir a origem a alguém é só
insensível querer obrigar a dizer
quem

o relato que posso fazer de mim mesma tem o potencial
de se desintegrar e ser destruído de diversas maneiras

— Judith Butler

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