quinta-feira, 26 de março de 2020

1.
esta mulher que tu vês fumando na sacada
nesta manhã cálida de inverno espaçado
uma mão repousada nos joelhos ralados
a boca que vez e outra se entreabre vulcânica
os olhos sobre alguma montanha
que preenche o horizonte verde
e azul de céu de ritmo preguiçoso
não é a mesma mulher que ontem te disse
que a vida é o momento que se vive
e nada além; não é a mesma mulher
que despiste e te olhou como quem se esquece
das montanhas escondidas no céu noturno;
não é a mesma, esta mulher aqui amanhecida,
toda a pele iluminada em saudade, e a imagem
que te atinge os olhos não é a mesma que esperavas
quando os abriste nesta manhã inesperadamente ensolarada
não é a mesma que crês ter sonhado a noite passada

2.
o vidro que te isola no quarto bagunçado, o véu
que acreditavas caído por terra, é a mensagem que entendes
é a mensagem que te chega em diferentes linguagens
é o espaço, aquele, que não sabes se podes cruzar
que não sabes se teus pés serão capazes de atravessar
e encostar o chão gelado que a circunda e que se expande
com o calor da pele da sola dos teus pés e dela
que te olharia como quem não contemplava há pouco
a indiferença perpétua das montanhas cobertas de verde
como quem já te esperava chegar para dizer bom dia
sorrindo todo olhos e a boca muda de quem espera
mas tu não sabes, porque o movimento não chega

3.
a mulher que te devolve o silêncio carinhoso
não é a mesma que atravessa o vidro em imagem dobrada
mas assemelha-se à imagem que tens registrada na retina
ferida pela claridade que a invade improvisadamente
no fundo dos teus olhos de castanha sabes que a vês
e a entendes como aquilo que é e parece ser

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