sexta-feira, 21 de agosto de 2020

dilapidar

 um dia precisei fazer
um homem de barro
uma estátua em madeira
em maneira a cobrir tudo
de ouro fundido em ferro
bruto de paixão e luto
feito algo da natureza
trabalho de formiga ou abelha
então juntei minhas mãos
olhei-as sem vê-las
distraída de êxtase
tremeliquei os dedos por diversão
sem saber o movimento exato
por onde começar a criação
enfiei as mãos no barro
e amassei-o fazendo-o
passar por entre os dedos
inteiros a distribui-lo
poro por poro
conhecendo sua textura e cheiro
apertei-o até ficar quase seco
assim me desconhecendo
juntei tudo com as mãos
que àquele ponto não
serviriam nem
para fazer pão
juntei-o recriando
esperando a magia da
fermentação dar-se sem
minhas mãos, esquecendo-me
do homem que esperava, maldição,
pensando na penetrabilidade
de meus poros e a umidade
de meus olhos: enfim sãos:
não nasci artesã
e indassim insisto
e por um momento pequeno
considero-me a mulher
que morde a maçã
e descobre caminhos outros
trilhas a serem seguidas
de punhos bem fechados
aquela cuja salinidade dos olhos
reequilibra o tom do choro
e umedece de novo o barro
como quem pode
como quem poderia
recomeçar do zero
número impossível
incompreensível em sua totalidade
e menos ainda em seu valor absoluto
mas não sou eva! e convivo
com meus pecados desconhecendo-os
crendo-me criatura em movimento
de reconhecimento
da criação, mas as minhas mãos
não dançam nem orientam, antes são
a não ferramenta de desferramentas
remolhando o barro vejo-me
imperfeita na iminência da impotência
a mão que treme
e nada cria
o som duro da consoante que não sai
o nó na garganta de quem
desconhece vogais
a madeira também umedecendo-se
apodrecendo-se, fazendo-se algo
novo por conta própria: criando-se
é criadora de sua própria criatura,
faz-se na potência: força criativa
relevando-me nua ainda
mãos e olhos em chama miúda
a massa completamente crua
e não há ouro que salve matéria bruta

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