sexta-feira, 22 de agosto de 2025

deixei ele lá e vim
o corpo
dele
como que cansado
trabalhando 
o meu 
esperando 
pelo mundo
que o esperava 
com calma também
então enfio o corpo
na areia ancestral
à beira do mar mítico
meu corpo
que é tão jovem
mal tocado pelo tempo
um grão em toda aquela areia 
meu corpo um minério
uma rocha moída
e moída e moída 
e ainda inteira 
meu corpo uma concha
desabitada
um sal marinho
como que parte
de algo inteiro
chego a ele em ondas

terça-feira, 19 de agosto de 2025

palavras como mistérios
jamais desvendados
palavras tatuadas
no corpo de um estrangeiro 
numa língua que não é a sua
no corpo de um estrangeiro 
com quem te deitas e gozas
palavras afiadas navalhas
e tuas mãos de seda
que nunca as tocam
palavras cacos de vidro
que te parecem espelho

sexta-feira, 1 de agosto de 2025

agora que não tenho filhos
e jamais terei netos
me pergunto quem iria
lembrar das horas
passadas com minha mãe
me contando de meu avô
meu pai e minha avó
minhas tias e seu avô
repetindo sons
como quem repete
a memória outra
me contando de seu avô
e da violência
que não compreendia
(em outra língua)
(no seu corpo)
(no corpo do meu tio)
me contando
de mim
quando ainda nem sabia
que seria assim

a memória está só, enfim

agora que não tenho filhos
pois nunca os quis ter
me pergunto quem irá
lembrar
do meu pai
lembrado (eu queria)
por sua
alegria (também)
por seus
defeitos
(e mais) pela
tentativa
de ser o que não foram
para ele
por não ter
me esbofeteado
por quererem
lembrá-lo
eu não me lembro
como era meu pai
com a minha avó
como foram os onze anos
com sua mãe
que eu não conheci

a memória está sempre por um triz

agora que não tenhos filhos
pois nunca os tive
me pergunto quem irá
lembrar
da minha avó
lembrada (me dizem)
por sua
beleza
por sua
doçura
epilética
morreu espancada
pelo meu avô
que também
esbofeteou
minhas tias
que fazem questão
de não lembrar
do próprio avô
do meu
eu lembro
os modos de dizer
a risada
e que morreu
dançando feliz

a memória é um risco de giz 

na academia

a frieza da palavra me toma como uma lâmina de ferro gelado parece vidro porque é frágil mas me permeia como as árvores o vento