sábado, 31 de maio de 2025

queria conhecer meu pai menino
desde que sua mãe falecera 
quando eu ainda não era nascida
que me pergunto como ele era
aquele menino de olhos doces
e curiosos crescido em meio a tantos 
outros filhos menos doces e muito menos
curiosos todos tão endurecidos pela perda
queria conhecê-los todos e vê-los brincar 
no palheiro e fugir do dono rindo a plenos pulmões
queria tê-los visto crescer ouvindo a voz
da minha avó e sentir o cheiro de seus cabelos
queria me deitar em seu colo e na barriga uma menina
que eu ajudaria a nomear
nomearia tudo o que ela tocasse
me sentaria em volta dela junto deles
e faríamos árvores de natal com pinhas
algodão e o som das nossas risadas
queria conhecer meu pai menino
viver um pouco a sua história e entendê-lo
para então dar à sua face de hoje 
a feição do menino que fora
entendeneo o menino que ele é

quinta-feira, 29 de maio de 2025

àquela época 
teus olhos pousavam 
em mim como garças 
num fim de tarde 
de represa

o pôr-do-sol nos assistia 
como a um espetáculo
da natureza, do amor 
entre jovens futuros 
amantes

me lembro de como 
a curva dos teus lábios 
ao disfarçar-me o olhar 
escondiam-revelavam 
os olhos pequeninos
curiosos como um menino

*

busco na geladeira
de meus pais

algo que me cure
a ferida nos dedos

o xarope
para o amor perdido

sexta-feira, 23 de maio de 2025

verdejam os campos de trigo o horizonte
os olhos castanhos do pai escondem
o verde por trás
como um bosque que esconde
uma clareira e jaz
na memória do homem

ali, nos trilhos verdunhos da íris
a infância a juventude os netos
correm pelos campos de trigo
ele ainda menino

sábado, 17 de maio de 2025

os campos de aveia verdinhos
tremelicam ao vento
confundem os olhos
da mãe gramíneos
que olha o horizonte
ouve na voz do vento
a voz do filho ido

quarta-feira, 7 de maio de 2025

o que precisa nascer
aparece no sonho buscando frinchas no teto

—Adélia Prado

as minhas pernas nem se abriam
no meu sonho eu dormia como nunca
eu menstruava e a cama era branca
vermelha agora do meu ventre
uma menstruação horrenda
sem mais mistérios eu tinha parido
de mim escorria um projeto de gente
feito fato era um feto um meu feito
e me recusava a entendê-lo
deformado como era queria ser
no mundo e me culpar por tudo
me recuso eu disse ao acordar
me recuso eu dizia ao me levantar
me levantei e saí por aí sem lembrar
me levantava e saía por aí dançar

mas não esqueci do sonho

Codesto solo oggi possiamo dirti,
ciò che non siamo, ciò che non vogliamo

—Eugenio Montale

posso querer tudo e querendo descubro
ausências lacunas escondidas
desejos enfim desvelados
aprendo que por querer posso também
não ter mas que fundamental é querer
criar uma futura eu e querer que ela exista
e que eu seja aquela que sempre quis ser
posso querer e posso ter tudo o que quiser

mas por mais que me ensinem tudo o que se pode querer
mas por mais que me ensinem tudo o que se pode ser

em mim restam

apenas estas

lacunas

 :

vias que em mim o querer não persegue

na academia

a frieza da palavra me toma como uma lâmina de ferro gelado parece vidro porque é frágil mas me permeia como as árvores o vento