terça-feira, 31 de maio de 2022

do fim.

 todo este tempo estive perdendo.

i.

tem a idade de uma criança
quer dizer, sobe em árvores
brinca de garrafão e arranha
os joelhos virgens
essa é a cicatriz
a inaugurar a pele
que se abre

tem a idade de uma criança
quer dizer, sabe de árvores
algumas coisas  mas
essencialmente sabe
que não sabe
de todas as coisas e aí sobe
a primeira das angústias
a que chama de curiosidade:
o interesse pelo vermelho vivo
da amora que explode em sua boca,
não pela primeira vez, e ainda surpreende
o sabor ácido que invade seu corpo miúdo;
a pergunta que não ganha corpo na língua
e vai se criando dentro, dança como uma planta
às vezes até esquece que foi no suco doce
do sangue que se confunde no ácido da
boca a pele aberta do joelho vivo

que deu um salto

nem sempre
é preciso competir


ii.

verde a garrafa verde o mato verdes os anos
dentro do dedo aberto um pedaço do vidro
e o cheiro do gosto do vidro no ferro aberto
o dedo que expulsa jorrando vermelho

por baixo de onde a cicatriz em queloide
às vezes ainda explode —
a forma do que foi ar
rancado


iii.

um pedaço de arame farpado não pode
viver dentro do braço, queimado de sol
e macio, tenro como fruta madura
feito um pêssego pronto pra ser
mordido, mas a idade que tem
não é do tempo de colheita

nos olhos do pai o castanho dá espaço ao verde
e vê de relance um pedaço que tem em si
o arame não ficou lá dentro, apenas abriu
teu braço-menino e de lá fez sair
todo o suco que ninguém bebeu

por baixo da pele costurada não há pedaço
do que foi?


iv.

todo este tempo estive perdendo

e toda criança em idade
mais ou menos de joelhos ralados
pálpebras, dedos e braços abertos
mesmo sabendo que não sabe
já sabe que perder é a primeira forma
de ganhar

v.

e toda criança tem idade pra saber
que não há como competir
com as garrafas escondidas no mato
ou os arames farpados de propriedades que escondem certas cachoeiras
ou o concreto do chão que o tempo todo segura o pequeno corpo
e dele guarda o que lhe cabe
ou a garrafa de plástico que teu irmão não vê
quando te faz quase não mais ver

não há como competir com o que acaba
inevitavelmente parte de ti


vi.

o corpo tem a idade de tudo, nos ensina a ana:
23 anos dos joelhos ralados
numa corrida para vencer com sabor de jambo vermelho quase roxo
21 anos do joelho aberto na praia numa caçada à cadela nina,
que, como todo cão e toda criança, se recusava a encerrar o dia
20 anos também da coroação num arbusto de coroa de cristo
o vermelho vivo da flor não desenganava dos espinhos
19 anos do polegar aberto na garrafa quebrada no mato
na subida implacável pra ver do mais alto o mar sem fim
18 anos do braço aberto no arame farpado da cachoeira
pra aprender que nem todo atalho é caminho
15 anos ou mais dos cotovelos ralados na bicicleta
na chuva de verão deslizante
14 anos ou menos da mão que abriu pela primeira vez uma lata de tomate abre-fecha
colocando dentro do corpo dançante o vermelho da carne e o sangue da fruta
metade da idade do corpo ou menos da menor lembrança do ataque
de raiva do irmão e o olho dentro da garrafa de plástico

quase 8 anos de quando nossas bocas abriram
costurando nossos corpos nus

o corpo tem todas as idades
e está sempre de aniversário

a pele cicatriza



vii.

todo este tempo estive perdendo
e ganhando partes de mim
que é a única forma de movimento
todo inverno será aniversário
do que não posso perder



viii.

que idade tem a criança que sempre somos?
que idade, a criança que nunca tivemos?
que idade, a vida, que continua
se tudo é nascimento?

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