sábado, 29 de junho de 2024

o que parece estático, espera
Adélia Prado

para M.

os cotovelos banhados
de suco de manga
que me escorria
dos dentes cheios
de fiapos
pingava até os pés
sujos de areia
e terra vermelha
as cascas me decoravam
uma vênus tropicana do interior
que nascia pra notícia
que me davas
os lábios carnudos
e limpos pareciam
cantarolar o absurdo
"eles estão esperando a tua mãe"
ouvia mas não entendia
a minha mãe nunca se atrasa
me olhavas primeiro
com ternura e então
impaciente
me dizias
"olha bem pra eles"
e então eu via
o meu tio e a minha avó
sentados lado a lado
o mesmo olhar
que nenhum de nós
herdou
nas cadeiras de fio de mangueira
flutuam
não descansam não afundam
inclinados um na direção do outro
ao mesmo tempo conversam
e calam
o silêncio agravando as suas auras
como numa pintura numa foto
antiga nos olham em preto e branco
um movimento que não sai
do lugar
as mãos perpetuamente quase
se tocando
"na imagem tem algo faltando"
o tom sério
"presta atenção e vê"
o meu rosto todo salgado
e eu não --
sonhava um mar azul
tudo imóvel os meus pés fincados
a imagem impenetrável diante de mim
eu sabia
eles a aguardam
pacientes
com saudade
com tempo
para toda uma vida
ela em algum lugar caminha serena
o verde dos olhos iluminando tudo
um brilho impossível
na sua mão eu sei carrega margaridas
girassóis e todas as suas rosas
onde seu pé toca
do chão brota
vida
não posso me virar e acompanhar
o meu corpo estático então
tudo adivinho pelos seus olhos
e percebo enfim:
o mesmo olhar me se desenha
nas pálpebras e aos poucos
eu vejo
que sim
eles esperam

também a mim

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na academia

a frieza da palavra me toma como uma lâmina de ferro gelado parece vidro porque é frágil mas me permeia como as árvores o vento